UMA FRUTA

Ainda pequeno, eu tinha medo de maçã. Na sala de catecismo tinha um pôster na parede mostrando Eva oferecendo uma maçã ao Adão. Enquanto aprendia o Pai Nosso, a Ave Maria e a Salve Rainha, ficava com os olhos fixos naquela gravura, os dois seminus no meio do mato e uma serpente enrolada nos galhos. Tinha medo da maçã e da serpente. Depois passou. Passei a gostar das maçãs argentinas, vermelhas e cheirosas, embrulhadas num papel de seda azul, uma a uma, que um dia Caetano encontrou poesia nelas. Muitos anos depois, convivia com elas diariamente. Seis horas da manhã eu estava no Mercado Central de Belo Horizonte para comprar uma, duas caixas. Elas eram embaladas bem apertadinhas e me impressionava a cor branca da madeira que vinha dos Pampas e aquele cheiro maravilhoso que se espalhava dentro da Rural Willys a caminho da Savassi, onde eu tinha um carrinho de frutas que funcionava 24 horas, no coração da Praça Diogo de Vasconcelos. Era início dos anos 1970 e foi assim que juntei dinheiro para ir-me embora do Brasil, fugir daqueles hipócritas disfarçados rondando ao redor. Vendia, além das maçãs, peras, bananas, mexericas, mangas, abacaxis, morangos e, na época do Natal, pêssegos, ameixas e uvas Niágara encaixotadas. Hoje, tantos anos depois, continuo convivendo com as maçãs. Lavando uma a uma com água e sabão e depois secando com um pano de prato as mãos úmidas de uma canção.  

[ilustração/Gravura de Bia Melo]

2 comentários em “UMA FRUTA

  1. Você é um escritor de talento raro. Texto curto, límpido, e cheio de emoção e de imagens significativas.
    Excelente, como sempre. Um prazer ler seu Sol todos os dias, mesmo os nublados.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s