LIVRE PENSAR

Desde o início da pandemia, meados de fevereiro, por aí, aproveito alguns minutos do dia para pensar. Às vezes penso deitado na rede na pequena varanda do meu apartamento, às vezes penso aqui mesmo no meu escritório, na cama, não importa onde. Quando digo parar pra pensar, é não fazer nada, ficar olhando as coisas, a parede cor de rosa, o céu, retomar as lembranças, como agora, lembranças de um velho apartamento na Rue de la Roquette, uma rua comprida que saía da Bastilha e ia até o cemitério de Père-Lachaise, onde estão enterrados Serge Gainsbourg, Edith Piaf, Chopin e Jim Morrison. Era ali naqueles quarenta metros quadrados que cultivava meu exílio, escrevia cartas freneticamente, recortava todos os dias as notícias importantes do Le Monde, empilhava os exemplares da Nouvel Observateur, ia lendo uma a uma as revistas Planeta que chegavam do Brasil, presente de um primo jogador, depois técnico de basquete. Grana curta, tinha poucos vinis guardados numa caixa de vinho de cor laranja. Ouvia Belchior sem parar, bem como Joia e Qualquer Coisa. Ouvia Dark Horse, de George Harisson e Oxygène, de Jean Michel Jarre, que aprendi a gostar graças a um artista plástico, hoje um velho bolsonarista. Lia e relia Fazenda Modelo do Chico e as aventuras de Werner Herzog caminhando sobre o gelo, de Paris a Berlim para encontrar uma amiga doente. São muitas as lembranças, a carne moída com milho verde e o arroz de saquinho que fazíamos toda semana, cozinheiros de primeira viagem. Os amigos eram poucos e bons. Um que colecionava parafina da embalagem do queijo Baby Bel para fazer vela, outro que caiu no Sena de madrugada e conseguiu sair do outro lado sem perder os tamancos suecos. Tomávamos vinho de clochard comendo torradas com camembert Président. Sonhávamos com o fim da ditadura lendo cartilhas da Maspéro. Escrevia para os jornais e revistas alternativas, esperava o carteiro todos os dias às sete da manhã em ponto, comia barras de chocolate de Ovomaltine sem a menor preocupação de aumentar o peso que era em torno de cinquenta quilos. Tinha uma MobileMe amarela guardada na cozinha, que nunca subi. Lia teoremas e poemas de Pasolini e também ouvia Cely Campelo pra não cair.   

[ilustração Gabriella Giandelli]

4 comentários em “LIVRE PENSAR

  1. Tenho boas lembranças de uma reportagem-colagem sua, que editei no Versus, em página dupla, ali por 1977. Se a memória não me trai, titulei: “Vatapá no rio Sena: Um dia de Caetano Veloso em Paris” (Carlos Clémen na direção de arte). Mantenho isso guardado nos meus alfarrábios analógicos.

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