No final da noite de domingo, dois de outubro, milhares de brasileiros estranharam a quantidade de votos do candidato que ficou em segundo lugar. Como pode? perguntaram todos.
Como pode alguém votar numa figura que, em rede nacional, ao vivo, elogiou o maior torturador da História do Brasil? Aquela mesma figura que, sentado no centro da Roda Viva, declarou que o seu livro de cabeceira era A Verdade Sufocada, de autoria de tal torturador.
Como pode alguém votar numa figura que riu da pandemia, que freou vacinas por não acreditar nelas, que foi incapaz de dizer uma palavra sequer para os familiares de que setecentas mil vítimas, que ofereceu cloroquina a emas, às gargalhadas?
Como pode alguém ter votado numa figura que colocou o nosso país novamente no mapa da fome? Que deu asas aos garimpeiros enquanto defensores dos indígenas eram assassinados, enquanto árvores caiam ou eram estorricadas pelas chamas?
A perplexidade foi passando ao mesmo tempo que a memória começou a funcionar.
O Brasil é um país que saiu às ruas em mil novecentos e sessenta e quatro, numa marcha com Deus, para defender um regime ditatorial e assassino. O mesmo país que um dia elegeu o glostorado Fernando Collor de Mello presidente da República, simplesmente porque ele dizia que ia caçar marajás na capa da revista Veja.
O mesmo país que elegeu Paulo Maluf durante anos e anos, mesmo naquelas eleições em que ele concorria com ótimos candidatos. O mesmo país que elegeu Eduardo Cunha, Tiririca, Janaina, Cacareco, o mesmo país que já viu, um dia, um Severino presidente da Câmara dos Deputados.
É sim espantoso. Quem teria votado em Eduardo Pazuello, o ministro da Saúde que, por incompetência, deixou dezenas de manauara morrerem sufocados no norte do país? Quem teria votado em Ricardo Salles, aquele que fez negociatas com madeireiros e garimpeiros, que abriu a porteira para a boiada passar? Quem teria votado em Daramares Alves, aquela que viu Jesus na goiabeira e insiste que menino deve vestir azul e menina cor de rosa?
Quem teria votado em Onyx Lorenzoni, aquele que mostrou documentos da Saúde falsificados, também em rede nacional e ao vivo? Quem teria votado no astronauta que aceitou, mansinho, o corte de verbas na Ciência?
Mas calma! Como já dizia o saudoso poeta, tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.
Vinte e oito dias depois do dois de outubro, teremos o trinta e outubro. A primavera estará mais firme, o sol mais forte e vamos, quem sabe, lavar a alma?
Atrasado para a consulta com a nutricionista, enfiei rapidamente algumas poucas coisas na sacola de pano da Strand Books: carteira, álcool gel, uma máscara 3M, a pastinha de controle médico, um guarda-chuva dobrável e só. Não, não saio com o celular nas ruas de São Paulo.
Abri a porta e vi no capacho a Folha de segunda, cuja manchete anunciava que o bolsonarismo demonstrou força e o presidente irá para o segundo turno com Lula. Já tinha visto online, mas mesmo assim enfiei o jornal dentro da sacola, tomando o cuidado para não amassar a pastinha que controla o meu peso.
Dei sorte, o ônibus Socorro não demorou mais que três minutos. Veio meio cheio, mas ninguém de pé. Pedi licença e sentei na janela, ao lado de um pintor de paredes, talvez. Ele tinha a camisa azul marinho de brim, ligeiramente respingada de tinta branca.
No ponto seguinte, entrou mais gente, muitas pessoas, parecem amigas. Foi aí que enfiei a mão na sacola de pano e tirei a Folha. Abrir o jornal foi difícil. Dobrei várias vezes até deixar na posição de ler a capa da Ilustrada.
Todos ou quase todos estavam de olho nos seis celulares. Uns três olharam assustado para aquele cara do século passado que ainda lê jornal de papel, ou melhor, lê jornal.
Ninguém que olhou se interessou pela manchete principal, ninguém olhou de soslaio as notícias que a Folha trazia, nenhuma. Pareciam desinteressados.
Difícil ler jornal no ônibus. Sempre fiz isso, mas agora senti que estava cada vez mais complicado. Será que os ônibus diminuíram, ficaram mais apertados?
Dobrei em quatro a primeira página e fui lendo:
No Senado, bancada dos bolsonaristas será maio
RJ e MG reelegem governadores Castro e Zema
Eder Jofre morre aos 86
Fiquei observando aquele mapa 48 por cento vermelho, 43 por cento marrom, cor de merda. Não se se foi de propósito, sacanagem da Folha.
Uma japonesa entrou e perguntou ao motorista alguma coisa meio em português, meio em japonês. Entendi apenas Hospital São Camilo.
Enfiei o jornal na sacola, levantei, dei o sinal e fiquei esperando o ônibus parar no meu ponto. Assim do alto dá pra ver o que as pessoas estão vendo no celular.
Dois entretidos num joguinho colorido, uma numa página de salmos, uma jovem via um filme, não sei qual. Uma senhora olhava sapatos e preços numa loja virtual. Uma outra enviava mensagens e respondia imediatamente.
Desci. O ônibus seguiu o seu caminho levando umas 30 pessoas, aparentemente desinteressadas pelo que aconteceu no domingo.
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