O SOL DE DOMINGO

É domingo em Kiev, mas se é domingo ou segunda, tanto faz como tanto fez. A semana começou com drones assassinos, russos ou iranianos – também não importa – sobrevoando a cidade, mirando  civis, despejando bombas sobre suas cabeças. A semana começou com crianças chorandonas creches, velhos correndo nas ruas com os olhos esbugalhados de susto e medo. Fogo, fumaça, tudo ruínas em segundos.

É domingo aqui também, e no Vietnã. Sobrevivemos. A vida passa como se fosse um livrinho de cordel, papel jornal, nas cores rosa, amarelo, azul, impressora antiquada. A Louca Damares e os Meninos Banguelas, Pintou um Clima, A Peleja do Diabo contra Nossa Senhora Aparecida, Kiprocó no Cirio de Nazareth. Não, os cordéis de verdade são mais divertidos, Carlos Zéfiro é muito mais divertido.

Esses animais soltos pelas cidades são alguns dos personagens da canção Reconvexo, de Caetano Veloso. Nunca ouviram Henri Salvador cantando Dans Mon Île, nunca riram com a risada de Andy Warhol, nunca viram a chuva que lança a areia branca do Saara sobre os automóveis de Roma.

Nunca viram um gol de placa de Bobô, nunca rezaram a novena de Dona Canô.

Ó Espelho puríssimo de todas as virtudes, Maria Santíssima! Vós, passados quarenta dias após o parto, quisestes, sendo embora a mais pura das virgens, apresentar-vos no Templo segundo a Lei para serdes purificada. Fazei que, à vossa imitação, mantenhamos o nosso coração puro de toda culpa, para merecermos assim apresentar-nos no templo da glória.

Pretos são chamados de macacos num país que finge não ser racista, um país que leu o best-seller de Ali Kamel e acreditou. Foram duas vezes em apenas uma semana, em Porto Alegre e em São Paulo, Sul outrora maravilha, nos tempos do Pasquim. Vimos na TV.

Salve Seu Jorge! Salve Eddy Junior!

O ponto de fuga pode estar em Flaneuse, as andanças de Lauren Elkin por Nova York, Paris, Londres, Veneza e Tóquio.  Leia o livro, não tem disco, não tem filme.

O ponto de fuga pode estar na dupla Martinho e Martnália cantando o feitiço da Vila.

Lá, em Vila IsabelQuem é bacharelNão tem medo de bambaSão Paulo da caféMinas da leiteE a Vila Isabel da samba
O ponto de fuga pode estar num velho livro escondido no alto da estante: 1958, o ano que não devia terminar, de Joaquim Ferreira dos Santos. Tempo de O Cruzeiro, Manchete, Maquis, O Mundo Ilustrado, Jornal das Moças, A Cigarrra, Cinelândia, Revista do Radio, Vamos Ler, Cena Muda, Visão, Careta e Grande Hotel.
Não há ponto de fuga, sete dias depois de domingo passado. Faltam outros sete para enfrentarmos o diabo na terra do sol. A terra em transe, cabeças cortadas.
O Brasil não é para amadores.

No final dos anos mil novecentos e quarenta, meus pais eram recém-casados, começo de vida, dinheiro curto, farinha pouca meu pirão primeiro.

Depois de muito procurar, acabaram encontrando uma casa para alugar. Simples, sala, copa, cozinha, banheiro, três quartos, ideal para abrigar os filhos que sonhavam ter.

A mudança foi feita numa caminhonete Chevrolet meio capenga, que fez duas viagens, já que tinham poucos móveis, apenas os básicos. Fogão, geladeira, mesa com quatro cadeiras, cama de casal, dois criados mudos e uma cristaleira.

Com uma pequena economia, deu para dar um tapa na casa, que tinha os muros cobertos de musgo, algumas telhas quebradas e as paredes interiores marcadas de mãos sujas e solas de sapato.

A torneira da pia da cozinha também pingava.

Depois de caiada toda de branco, eles se instalaram naquela casa que ficava na Avenida Paraná, centro de uma Belo Horizonte ainda bem provinciana, poucos carros pretos importados nas ruas, muitas árvores, pardais e um ar puro que permitia receber pessoas do Brasil inteiro para curar a tuberculose.

A primeira surpresa na nova casa aconteceu no final da tarde do primeiro dia em que estavam lá instalados. O meu pai estava na repartição, a campainha tocou e minha mãe foi atender.

Abriu a janelinha de vidro da porta da sala e um homem perguntou se a Valerie estava. Minha mãe disse que não tinha nenhuma Valerie ali, que quem morava naquela casa era uma família. O homem desconfiou, insistiu, mas acabou indo embora.

Não passou meia hora, um outro homem, meia idade, calvo, terno surrado, perguntou pela Gracy. Foi quando caiu a ficha da minha mãe.

Durante muitos e muitos anos, ela contava essa história, para deixar claro o aperto que já tinham passado na vida. Eles alugaram uma casa que era uma casa de tolerância, como dizia minha mãe.

Depois de Valerie e Gracy, vieram muitos e muitos outros nomes, quase todos com sotaque francês. O pesadelo durou um ano. Virara e mexia, a campainha tocava atrás da Eliette, da Suzette, da Michelle.

O meu pai, um cara muito organizado e caprichoso, chegou a escrever numa cartolina com o seu normógrafo: “Casa de Família”. E colou com durex na parede do alpendre.

Ele se sentia um pouco culpado por terem ido morar numa zona. Contava que foi ingênuo, não percebeu que tratava-se de uma casa de tolerância nem mesmo quando trocou todas as lâmpadas dos quartos, que eram vermelhas.

Além do cartaz no alpendre, ele arrumou o Joli, um cachorro meio encrenqueiro, capaz de colocar qualquer velho babão pra correr.

Ali na casa da Avenida Paraná tiveram dois filhos, uma menina e um menino, até que construíram a casa da Rua Rio Verde, no familiar bairro do Carmo, onde tiveram outros três filhos, mais um menino e mais duas meninas.

Belo Horizonte cresceu, mudou, e hoje, as duas casas não existem mais. A da Rua Rio Verde virou um edifício que leva o nome de Residencial Villas. A casa da Avenida Paraná, essa virou crônica.

[Mais crônicas de Alberto Villas em cartacapital.com.br]

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