O SOL DE DOMINGO

Cinquenta tiros e granadas no ar. Uma guerra particular travada entre um ex-deputado bolsonarista e agentes da Polícia Federal, no interior do Rio. Deu a louca no outrora aliado de primeira hora do ex-presidente Fernando Collor, isso no século passado. O presidente da República, Jair Messias, vem batendo na tecla de que o povo precisa estar armado. E o nosso Jefferson tupiniquim seguiu as orientações do seu mestre.

Todos armados!

Selvagens da motocicleta estão circulando pelas ruas de São Paulo à procura de presas. Param, abordam, apontam os revólveres, tomam o que a vítima tem, inclusive da dignidade, atiram e vão embora.

Bolsonarista armado atira em aniversariante petista por ele ser petista. Não gostou de ouvir a música Sem Medo de Ser Feliz e atirou para matar, estragando a festa e a vida de uma família inteira.

Homens armados estão atirando em mulheres que não aceitam ser suas propriedades privadas. Armam emboscadas, muitas vezes a lábia deles falam mais forte e acabam matando as mais fracas.

Adolescentes pegam a arma do pai em cima do armário, enfiam na mochila e vão para as escolas matar os colegas, quantos conseguirem abater.

Uma briga de trânsito acaba em três tiros na cabeça. Um fechou o outro e morreu no sábado, no meio da rua, atrapalhando o tráfego.

Cenas brasileiras expostas para a visitação pública na tela da TV.

Muito choro, muita indignação, muitos pedidos de justiça que todos  sabemos que não vem. Lágrimas escorrem, mães desmaiam, parentes fazem um breve relato do currículo da vítima diante do microfone e a vida continua.

Tudo isso sem contar as balas perdidas que, curiosamente, só acertam pretos. No Jacarezinho, na Rocinha, no Alemão, no Andaraí, no Buraco Quente, na Paciência.

Haja!

Só mesmo um jovem cabeludo, pouco mais de vinte anos, poderia ter uma ideia dessas. Sair do exílio em Paris e ir até a capital do Líbano, por terra.

Tinha acabado de ler Sur le chemin des glasses, de Werner Herzog, onde ele conta que, assim que soube que sua amiga estava doente terminal, resolveu ir à pé de Munique, onde morava, até Paris, para vê-la. E foi. Mas a minha ideia não era ir a pé.

E fui.

Atravessei a França de trem, parte da Alemanha de ônibus, desci toda a bota italiana espremido num vagão da Trinitária, peguei um navio em Bridsi até a Grécia e fui cortando países que nem existem mais no mapa. Alguns comunistas, com aqueles outdoors enormes no meio do caminho, glorificando seus heróis.

Atravessei a Turquia de ônibus, entrei na Síria e acabei chegando ao aeroporto internacional de Beirute de avião, num desses voos que custam mais barato que um Uber daqui de casa, na Lapa, até o Morumbi.

Hoje eu acordei com saudade de Beirute.

Das suas ruas irregulares, seus restaurantes populares, desses com mesa de toalha xadrez e um vasinho de flor de plástico decorando.

 

Os quintais transbordando de árvores frutíferas, coloridos de damascos, ameixas, peras e muitas uvas. O vira-latas perambulando nas periferias, os vendedores de tapetes lindos e caríssimos, o quibe de carne de carneiro, os taxis comuns buzinando procurando fregueses.

Os homens de mãos dadas andando pelas ruas, dando beijinhos ao se cumprimentar, coisa que não existia por aqui naqueles anos 1970.

 

Os soldados espalhados pela cidade, escondidos atrás de sacos de areia, só nos assustaram nos primeiros dias. Rapidinho nos acostumamos com eles.

Beirute estava em pé de guerra, os vendedores gritavam as manchetes do L’Orient-Le Jour que assustavam, bem como como o barulho de jatos na madrugada, no céu que, aparentemente, não nos protegia

Sim, corri risco, corri perigo viajando por todas as cidades do minúsculo país. Quando a tarde caia, voltava para minha Beirute querida para assistir o espetáculo do por do sol, debaixo de um calor de dar inveja aos camelos do Saara.

Saudade do suco de romã, da coalhada seca, do pão redondo que as mulheres faziam nas ruas, assados em pedras quentes.

O trânsito caótico, os automóveis amassados de tanto chega pra lá, o mercado com cheiro de curry, de pimenta do reino, de salsinha.

Saudade daquele comércio zoneado que vendia sandálias de dedo, pneus, burcas, espiral mata-mosca, tecidos, baldes, vassouras, colchonetes, cotonetes, camisas floridas, um pouco de tudo.

Sim, acordei com saudade de Beirute e a única lembrança que tenho de lá é um exemplar da revisa Luluzinha que comprei na rua Hamra, um dia antes de deixar o país.

[www.carta.capital.com.br]

2 comentários em “O SOL DE DOMINGO

  1. LINDAAAA sua crônica sobre o Líbano. Me emocionou muito! Levei! Que bela historia! E a capa de Luluzinha árabe é icônica! Merci cheri.

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