O SOL DE DOMINGO

O Brasil viveu um abismo entre o domingo passado e este. Foi como se estivéssemos chegado ao fundo poço e saído de lá como um boneco sai de uma caixa de sapato, impulsionado pela mola. E que faz muita gente rir. 

Durante mais de duas horas, milhões e milhões de olhos ficaram voltados para aquelas duas porcentagens no canto da tela da televisão.

Passou! Sim, Lula passou!

Durante os cinco dias úteis, aconteceu um pouco de tudo, mas no fim, balões subiram ao céu anunciando novos tempos, a vitória da democracia. 

Fanáticos foram encostando seus caminhões nas estradas por ordem dos patrões. Aquela história de encher a via de entulho, colocar fogo nos pneus. Queriam anular o resultado apertado, mas resultado. Sabe aquele um a zero aos 49 minutos do segundo tempo? Pois é. Mas o gol foi legítimo. 

Um doido se agarrou à frente de um desses caminhões enormes, que assustam, e saiu desfilando estrada afora. O resultado foi, além do vexame, o maior número de memes da história. 

Na véspera, todos lembram bem, uma deputada pistoleira saiu de revólver em punho numa rua nobre de São Paulo, querendo caçar um jornalista negro. 

Dias depois, ela apareceu nos Estados Unidos dizendo que foi a trabalho. Deu uma entrevista para a Jovem Pan News e os entrevistadores não tocaram no assunto faroeste caboclo. 

Em Porto Alegre, uma pequena multidão saiu às ruas para comemorar a prisão de Xandão. Alguns, até agora não sabem que é fake news.

Quarenta e oito horas depois, o presidente da República deu as caras, uma cara lambida. Falou meia dúzia de coisas nas entrelinhas, em exatos dois minutos, e se retirou. 

Todos começaram a comentar:

Onde estará o Onyx Lorenzoni, que perdeu lá no Sul?

Eu queria ver a cara do Moro na hora em que o Bonner anunciou que Lula estava eleito presidente do Brasil.

E a Damares?

E o Rodrigo, governador de São Paulo? E o Zema, que mergulhou na campanha do Bozo no segundo turno?

E a Micheque? Dizem os sites de fofoca está voando flechas do cupido pra todo lado. 

Lula e Janja voaram para a Bahia, que lhes deu régua, compasso e uma enxurrada de votos.

Geraldo Alckimin surgiu como a estrela da transição. 

Rebeca virou campeã do mundo.

Neymar colocou o rabo entre as pernas.

E nós começamos a esquecer o Jair. Que maravilha!

Meninos ainda, gostávamos de brincar de vida nova total. Eu e meu irmão. Quando a nossa bagunça em casa estava generalizada, colocávamos a mão na consciência e declarávamos guerra aquela zona federal e decidíamos investir numa vida nova, que chamávamos de VNTotal.

O que era essa vida nova total?

Nosso mundo girava em torno daquela casa da Rua Rio Verde, no bairro do Carmo, em Belo Horizonte. Não ia muito longe. E declarar vida nova total significava colocar tudo em ordem para recomeçar uma vida mais organizada, sonho da nossa mãe.

Colocar tudo em ordem significava colocar tudo em ordem mesmo! E geralmente era sábado, dia sem aula, que decretávamos mãos à obra!

Começávamos pelo pombal. Com um balde, vassoura, rodo e um litro de Creolina, limpávamos aquilo a fundo. Esfregávamos o chão, as paredes, reorganizávamos cada um dos ninhos, sem incomodar o casal que estava chocando.

Do pombal, passávamos para os passarinhos. Eram meia dúzia de gaiolas e elas também passavam por uma faxina e tanto. Colocávamos areia, alpiste, água fresca, meio ovo cozido para os canarinhos e meio jiló para os periquitos. Dependurávamos as gaiolas no sol da manhã e os passarinhos, em algazarra, pulavam de poleiro em poleiro, beliscando o jiló, o ovo cozido.

Subíamos a escada que ia do terreiro (mineiro não fala quintal) até a cozinha e íamos direto atacar o nosso quarto. Éramos pequenos, mas o trabalho parecia de profissional.

 

Separávamos as roupas sujas e arrumávamos os armários, empilhando camisetas, dobrando cuecas e meias, dependurando calças e blusas de frio.

Organizávamos por data e empilhávamos nossas revistas, eu a Realidade e o meu irmão, a Quatro Rodas. Eu gostava dos gibis do Walt Disney, ele era viciado naqueles livrinhos de bolso do FBI.

Tudo arrumadinho, tirávamos as tranqueiras da pasta de couro e começávamos a colocar ordem no material escolar. Os livros, os cadernos, apontávamos os lápis, lavávamos com água e sabão as borrachas, colocávamos no estojo o compasso, o transferidor, as réguas e esquadros.

Os nossos bonequinhos e os carrinhos Match Box de coleção, arrumávamos em duas caixas de sapato.

Limpávamos os vidros da janela, as paredes, passávamos cera no chão e, em seguida, a enceradeira.

Tudo arrumadinho, nossa mãe ficava orgulhosa e dizia apenas:

– Agora é só conservar!

Tomávamos banho, penteávamos o cabelo e declarávamos que a Vida Nova Total estava começando naquele momento.

 

No domingo passado, quando o Willian Bonner anunciou o fim da apuração das eleições presidenciais, eu senti que estava começando uma Vida Nova Total.

Agora é só conservar!

[www.cartacapital.com.br]

 

 

2 comentários em “O SOL DE DOMINGO

  1. Vida Nova Total em pleno Sol de Domingo: bela crônica: “atual & atuante”, como dizíamos nos anos 60. Bom domingo, meu caro Alberto!

  2. Dois meninos brincando de trabalhar na BH de antigamente. O jiló na gaiola, a faxina no pombal, saborosíssimas descrições. No fim, o aviso de quem entende do assunto: “agora é só conservar”. Parabéns, Villas e viva a Vida Nova Total.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s