Juro que tinha gente pensando em abandonar o barco, ou melhor, pegar aquele velho navio, quiçá o primeiro avião com destino a felicidade. Tinha gente também pensando em se instalar na República Socialista do Nordeste Brasileiro. Qualquer Estado a partir da Bahia estava de bom tamanho.
Mas todos ficaram!
Ficaram para assistir um espetáculo péssimo, produção pífia, com atores de quinta categoria, aqueles que apresentam suas peças em frente aos quartéis. Nada mais patético do que ouvir uma senhorinha gritando: eu não quero que isso aqui vire a Venezuela! Ou um grupelho (grupo + pentelho) ecoando o Hino Nacional fora do tom, sem melodia, vocês não estão entendendo nada!
Ficaram para ver o sumiço do presidente da República, este sim, abandonou o barco.
Ficaram para chorar a partida de Gal Costa, tão repentina. Setenta e sete anos, nesses tempos modernos, não é idade para morrer. Ficaram aqui para ouvir Negro Amor, numa mistura de Dylan com Caetano:
Seus marinheiros mareados
Abandonam o mar Seus guerreiros desarmados Não vão mais lutarFicaram para chorar também a morte do Senhor Brasil e os seus casos caipiras de verdade.
Ficaram para admirar a lista de excelência feita pelo grupo de trabalho de Lula para a transição. Pensar que já tivemos Damares, Salles, Olavo de Carvalho, Pazuello, Weintraube, Braga Neto, Onix, isto não é grupo de trabalho, é trem fantasma.
Ficaram para ver Lula chorar ao falar da fome, fome que ele certamente já passou.
Ficaram para ver os filhotes de Bolsonaro no Consulado da Itália entrando com pedido de cidadania. Quem quer essas trolhas por lá? Talvez a Meloni, talvez!
Ficaram para completar o álbum de figurinhas da Copa, para fazer as contas se leva ou não um pacotinho de nêspera por 19.99 nos peg-pags da vida.
Ficaram para abrir os braços e fazer um país!
Os dias foram passando, uns após os outros, formando semanas, meses, dois anos. Eu não colocava os pés no hall do meu apartamento. Nem mesmo o lixo diário era eu quem levava para um compartimento, no mesmo andar.
Tinha medo de abrir a janela, respirar fundo.
Os dias foram passando e eu enfurnado dentro de casa, usando praticamente três conjuntos de moletom, um azul marinho, um cinza e outro preto. Enquanto um lavava, o outro secava e o terceiro estava no corpo.
Lavava as mãos mais ou menos umas trinta vezes por dia, bem lavadas com Protex, depois álcool gel. Esfregava nos braços e nos antebraços. Depois anda esfregava as mãos molhadas no rosto.
Lavava as frutas e legumes um a um, com água e sabão, depois de deixar 20 minutos de molho na água com algumas tampinhas de água sanitária.
Não usava a mesma máscara duas vezes. Uma de manhã, uma de tarde e uma de noite. Depois, eram embrulhadas em sacos de plástico e iam para o lixo, quase hospitalar.
Portas, janelas, fechaduras, puxadores, acendedores, eram borrifados com Lysoforme diariamente.
Os pacotes que chegavam do iFood e do Mercado Livre passavam pelo spray de álcool como se estivessem num lava-jato.
A gente não enxergava a bactéria, mas ela parecia estar no ar, voando sorrateira pronta para pousar no nosso nariz.
Quantas vezes não me senti febril, com falta de ar, sem paladar, sem olfato, puro delírio psicológico. Media a febre duas vezes por dia.
A televisão ficava o dia inteiro ligada na GloboNews. O giro pelo Brasil nos fazia crer que ninguém tinha escapado do pesadelo, daquela agonia.
Sonhava com a Cidade Ho Chi Min, o único lugar no mundo que ainda não tinha registrado nenhum caso.
De noite, o Alan Severiano aparecia no Jornal Nacional para dar os números da tragédia, que assustavam.
346 mortos em 24 horas!
Alguns amigos estavam entubados, uns isolados em UTIs de campanha, outros mortos.
A fotografia de covas abertas esperando corpos na primeira página do jornal, quase me fez desistir de pagar o boleto da Folha de S.Paulo.
Os bares fechados, os restaurantes, os bufês infantis, os escritórios, as lojas, as escolas, tudo fechado deixava a cidade mais silenciosa e sem engarrafamento.
Os ônibus passavam vazios e o barulho de ambulâncias era quase que permanente, aqui no meu apartamento, bem em frente ao Hospital Sorocabana.
Começamos a pedir tudo por delivery. O supermercado, os remédios, os temperos do mercado, as esfirras da Paola, o frango desossado do Cacilda, o hambúrguer do Criminal.
Não tinha teatro, não tinha cinema, não tinha futebol, não tinha exposição.
Tinha um ministro da Saúde atrás do outro, tinha presidente da República dando Requinol pra ema, tinha ministro passando a boiada, tinha gente sem ar em Manaus, tinha CPI com altos índices de audiência no ar, tinha Paulo Gustavo morto.
Não tínhamos governo.
Sensacional. Obra de arte.
Pois é, Villas… Nem imaginávamos que chegaríamos a milhares de mortos por dia…
Conseguimos vencer o Tulius Detritus nas urnas, e embora Lula já esteja praticamente dirigindo o país, ainda temos que aturar o malévolo por mais alguns dias que parecem que não vão terminar nunca.
Estamos num surto de BQ.1. E o nefasto e seu assecla Queiroga ainda nem começaram a negociar as novas vacinas bivalentes. E eu, cuidadosíssima, que trabalho em casa, saio pouco e continuo usando máscara e álcool gel e o escambau, acabei pegando a nova variante da praga.
Graças a 4 doses da vacina, que tomei assim que foram sendo oferecidas, meu caso é leve. Mas é desconfortável. E assustador.
E o número de casos aumenta de novo, diariamente.
Quero ver esses criminosos pagarem pela péssima gestão da pandemia, pela quantidade absurda de mortos, pelo sofrimento de quem perdeu país, filhos, amores, amigos, vizinhos, colegas de trabalho… E pagarem também pelo desmonte da educação, da ciência, pela destruição do meio ambiente e de tantas outras coisas…
Que ninguém nem chegue a sugerir “anistia ampla, geral e irrestrita” para esses criminosos! Seria uma afronta, uma ofensa ao país e aos cidadãos!
Bjs, bom domingo, bom feriado.