Foram sete dias com todos de olhos voltados para o Carnaval. Quase todos. Aqueles animados com as alegorias que vão desfilar na avenida, aqueles com pequenos detalhes importantes pra sair bem na foto no bloquinho, aqueles na fila do abadá, aqueles diante da televisão achando como sempre uma loucura aquele bando de malucos pulando nas ruas durante três dias inteiros. Aqueles que acreditam mesmo que atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu.
A Globeleza sumiu da tela da Globo, deixando para trás apenas o logotipo e o refrão da trilha sonora. Talvez seja um novo dia, um novo tempo. Nada de mulher nua purpurinada sambando, se acabando.
Sou meio Chico nessas horas. Quem me vê sempre quieto, parado, calado garante que eu não sei sambar.
Foi uma semana de muitos pretos. Os menininhos fazendo propaganda do xampu crespinho na hora do break, os que continuam pedindo justiça depois da bala perdida, os craques em campo marcando seus gols, os repórteres da Globo em número cada vez maior, derrubando de vez a ditadura de Alice Maria que acreditava viver no país das maravilhas.
Foi uma semana de indígenas se recuperando da fome, escapando do genocídio. As primeiras imagens já mostravam eles se alimentando, algumas gramas a mais, o ar triste indo embora de rostos ainda sofridos. O novo governo conseguiu salvar muitos deles, não fosse o novo governo, estavam condenados a morrer de fome, de susto, de bala, de veneno na água.
Foi uma semana de escombros e milagres. Turcos e turcas saindo debaixo de lajes pesadas, duzentos e quarenta e oito horas depois da terra tremer, e com vida. Os socorristas de coletes laranja, vermelho, limão chorando de emoção e não é pra menos.
Foi uma semana de bombardeios e dezenas de mortes numa Ucrânia que vai resistindo, um ano depois da primeira bomba cair em Kiev. Putin virou estrela de cartunistas do mundo inteiro, cartuns amargurados, quando eram pra ser engraçados.
Foi uma semana de muita água desabando, aquela coisa de que choveu em um dia tudo que deveria chover em um mês. Barrancos soterrando famílias, documentos, o pouco que cada um tem.
No meio disso tudo, um velho cansado, afogado no sofá, levanta desajeitado para engolir o seu comprimido de oxalato de escitolopram 10 mg e reclama: Ninguém aguenta mais Sabrina Sato! Que saco!
Ando meio angustiado porque tinha duas grandes paixões na vida: banca de jornal e loja de disco. Ainda bem que elas despareceram nos meus mais de setenta anos. Fico imaginando se isso tivesse acontecido no auge dos meus dezoito, vinte anos, quando parava durante horas diante uma banca e passava todos os dias por uma loja de discos no centro da cidade.
Ainda bem que uma terceira paixão – na verdade, tenho várias na vida – sobreviveu nesse mundo sideral, até quando não sei: a livraria.
Apesar de uma grande ter decretado falência esta semana em São Paulo, várias surgiram nos últimos tempos, pequenas, charmosas, aconchegantes. Vou citar apenas duas: a Livraria da Tarde, em Pinheiros e a Cabeceira, aqui na Lapa, onde moro.
Revistas que comprei nos últimos cinquenta anos, sobrevivem em um cômodo reservado a elas aqui na minha casa. Encadernadas, algumas bem amareladas, mas vivas: Realidade, Bondinho, Senhor, Planeta, Joaquim, além daquelas que sobreviveram a sete mares e chegaram até aqui, depois do meu exílio: Ulysse, Actuel, Magazine Littéraire, Geo, Le Fou Parle, Le Sauvage, L’Histoire.
Discos, em vinil ou em compact-disc (era assim que se dizia) cobrem algumas paredes do meu escritório, sei lá se museu ou coisa parecida.
Sim, estão aqui os vinis brancos de Yoko Ono, o Exile on Main Street, dos Rolling Stones, o Ram, de Paul MCartney, o Weasels Ripped My Fllesh, do Mothers of Invention. Não vou citar outros gringos por motivo de segurança.
Estão aqui ao meu lado o primeiro disco de Tom Zé, onde ele brada: não se morre mais, cambada! E o primeiro de Walter Franco, onde ele pergunta: o que é que você tem nessa cabeça, irmão?
Tenho discos de Tim, Tom e os Miltons, mas deixa isso pra lá.
Quero falar dos livros e das livrarias, o prazer que o mundo moderno ainda não me tirou. Tenho ido menos a livrarias, mas quando vou, fico louco. Ontem mesmo fui a uma e queria comprar tudo. Os dois volumes de Proust, a biografia de Fernando Pessoa, o Dicionário Drummond, o 2222 sobre o disco do Gil, as novas edições de Dostoievsky, era tanta coisa que sai apenas com o didático livro sobre biografias do Ruy Castro, esperando o cartão virar.
Muitos amigos dizem que reciclam livros, que todo fim de ano enchem um caixote e passa pra frente, não acumulam. Como vou me desfazer dos livros de Gabriel García Márquez? Como vou me desfazer dos latino-americanos? Ernesto Sábato, Carlos Fuentes, Manuel Puig, Julio Cortázar, Jorge Luiz Borges, Vargas Llosa, Eduardo Galeano, Juan Rulfo, Augusto Roa Bastos e tantos outros?
Sei que não tenho mais espaço neste apartamento, mas sempre arranjo um cantinho para colocar mais um livro.
Andaram dizendo que o e-book ia acabar com o livro de papel. Ainda bem que ficou na conversa. Não, não sou daqueles que dizem que gostam do cheiro do livro. Não faço questão. Faço questão das coisas que estão escritas neles.
Como faço questão, de tempos em tempos, folhear uma Bondinho, como faço questão de colocar na vitrola o vinil branco da Yoko Ono, quando estou sozinho em casa.
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