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Uma tragédia no auge do Carnaval
As águas de fevereiro fazem estrago todos os anos
Alguma coisa acontece no carnaval paulistano
Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho, as estrelas da noite
Hoje o samba saiu
Sinto o puxão na manga direita da camiseta.
-Comprou onde?
-Você tá falando comigo?
-Só pode ser, né? Onde?
-Mas o que você quer saber?
Tento uma pausa no diálogo de perguntas atropeladas, fecho o livro que lia no banco ao lado da janela e olho com mais atenção pra jovem bonita, de olhos grandes.
-A camiseta, véio. Comprou onde?
A menina deve ter uns 17 anos. Uma negra de cabelos cheios e anéis prateados na mão direita, que ainda segura a minha camiseta. Recolho o braço e ela solta.
-Na Vila Buarque, é um bairro lá de São Paulo, perto do centro. Conhece?
-Não, nunca fui a Sampa. Tenho vontade. Mikaela! Mikaela!! Mikaaa!!!
Ela segura novamente a manga da camiseta e esfrega polegar e indicador como quem avalia o tecido.
-Que foi, Rayanne?
A moça que responde, a Mika, também é negra, também de cabelos black power. Está a uns dez metros de distância quase grudada no motorista. Eu e Rayanne, num dos últimos bancos. Para ser ouvido é preciso gritar.
-A camiseta dele é igual aquela que tua prima te deu no amigo oculto. Rayanne berra, sem esforço.
Vários passageiros estão de pé. Eles param de digitar seus celulares e passam a acompanhar a gritaria. As cabeças vão e voltam, como num jogo de ping pong. Quem está sentado se vira e me olha.
-Num tô vendo daqui.
-Dá pra você levantar? A minha prima quer ver a camiseta.
Um homem ri. A mulher ao lado dele cochicha algo com o namorado barbudo, que enlaça sua cintura.
Levanto um tanto sem jeito, estico um pouco o peito e puxo a camiseta pra baixo. O ônibus inteiro me encara, Passageiros curiosos pela minha cara e, claro, pela camiseta branca com um bolso retangular azul.
-Ele disse que comprou em São Paulo.
Começo a gostar da brincadeira e aumento o volume.
-Moro lá, exxxtou aqui porrque vim visitar merrmão.
-Pô é caô, o cara é paulixxta e fala que nem carioca.
Entro de vez na onda.
-Nasci aqui e moro lá. Vem pra cá Mika, aí a gente não precisa gritar tanto.
-Aqui tá menos embaçado. Sempre viajo perto do Deivison..
Relaxo de vez.
-Né purr nada não, mas acho que a minha foi maixxx barata que a tua. Paguei 50 e levei duaxx. Tu não perguntou pra prima quanto foi?
-….
– Pô vacilou, Mika. Agora a gente tirava a dúvida.
O ônibus se agita e Mika se esgoela, abafando a campainha.
-Aí vi vantagem. Vinte e cinco cada. Tinha muitas cores? Rayanne, tira foto. Ray!!
-Não dá, a gente já vai descer.
Volto ao volume normal de um passageiro normal, num ônibus normal.
-Só para vc saber: lá em sampa não é Amigo Oculto, é Amigo Secreto.
Às gargalhadas, Rayanne grita pela última vez.
-Mika, Mika!!! Ele tá dizendo que em São Paulo é Amigo Secreto. Vê se pode? Secreto.
A mulher do banco à frente aproveita a chance.
-Minha tia, que já morou lá, me contou essa. Diz que é mesmo.
Um jovem com a camisa do Fluminense opina:
– Se oculto é sinônimo de secreto, qual o problema?
– Não sendo sigiloso, tá tudo certo. Palpita o namorado barbudo.
Rayanne está de pé e antes de descer me dá um sorriso.
-Valeu Paulixxta.
Aos poucos, os passageiros voltam às telas. Ainda vejo as duas primas em passos rápidos já na outra calçada. Admiro a espontaneidade carioca, o jeito de puxar assunto, mesmo que seja puxando a sua roupa. Rio do meu Rio. Da janela o que curto agora é a viagem num ônibus íntimo da cidade: o 433.
Pela paisagem e pela memória, uma relíquia. Nele experimentei a independência de ir sozinho pra escola. Pagava a passagem e recebia uma ficha de plástico, redonda e azul com a inscrição: Deposite no Caixa.
Adulto, quando subia os degraus encontrava a freguesia da madrugada. Gente perdida na noite. Gente que se achava na noite. E eu com eles, feliz.
Motoristas e cobradores – no Rio, chamados de trocadores –
não esquecem dos beberrões que iam viajar no máximo seis ou sete paradas à frente do ponto final, no Leblon, mas que adormeciam e só acordavam no outro ponto final, quase 20 quilômetros e hora e meia depois. Um cheiro forte que combinava álcool, perfume barato e suor, empesteava o ônibus. Quando o motorista sacudia o ombro, eles pediam com a cara amarrotada para voltar de graça. E conseguiam. Aí, dormiam de novo, passavam outra vez do ponto e assim iam e voltavam, entre roncos e sonhos, até o fim da bebedeira. O 433 curava ressacas e aos acordados ensinava História.
Partia da praça Barão de Drummond, homenagem ao inventor do jogo do Bicho. Seguia por Vila Isabel, bairro de Noel e Martinho. Depois Maracanã, o maior estádio do mundo. À frente, o Largo da Segunda-Feira, com um ótimo salão de sinuca e um episódio marcante: em 1969, terminou ali, no encontro da Haddock Lobo com a Conde de Bonfim, o sequestro de Charles Elbrick, o embaixador dos Estados Unidos. Um valioso refém da Luta Armada trocado por ativistas presos pela ditadura.
Próxima parada: Estácio, onde nasceu a primeira Escola de Samba, a Deixa Falar, de Ismael Silva e o restaurante Nova Capela, com o mais tradicional cabrito assado da cidade, ou melhor, do mundo
Desponta a Lapa, dos malandros e do Circo Voador. Vem a Glória, o Palácio do Catete, o endereço de Getúlio Vargas, antes do tiro no peito. É o começo da zona sul.
Chega-se ao Largo do Machado, dele, Machado de Assis. A partir dali dimunuía o número de engravatados e crescia a turma da praia. Com pouca roupa, Iam de pé e felizes pra Copacabana, Ipanema e Leblon.
Cor de tangerina madura, o busão era visto de longe. No ano da olimpíada, o
antigo viajante se surpreende. O 433 ficou branco e o trajeto encolheu, sem chegar às praias mais conhecidas.
Mas que ninguém duvide: o antigo Laranjão da Madrugada segue como ótimo ponto de conversas coletivas, assim como as praças, igrejas, praias, botecos e esquinas dessa maravilha de cidade. O assunto é o que menos importa.
*Laranjão da Madrugada é uma das crônicas de Birinaites, Catiripapos e Borogodó. O livro foi lançado na segunda-feira em São Paulo