O SOL DE SEGUNDA-FEIRA 27.02.23

A solução imediata não existe

As favelas se espalham

Mais uma tragédia na costa italiana

O fim das buscas no Sahy

Mexicanos revoltados

Tititi

Fim de festa

Agronegócio, bandeira do Estadão

Eu não tenho onde morar, por isso moro na rua

Um gigante

Gisele na capa da Vogue Itália

Na capa do suplemento L’Époque, do Le Monde, os franceses revoltados com os carrões, antiecológicos e sem sentido no mundo de hoje.

Gabriela Prioli, a bola da vez

Por trás do muro alto, o silêncio de duas fileiras de ciprestes e a solenidade de esculturas, estátuas e bustos. O único som do lugar vem das rolinhas atraídas pela jaca, que se espatifou, escandalosa, no cimento áspero. Na alameda seguinte, em letras douradas, a família Abdala resumiu a tristeza da despedida de Anselmo: “Que Nosso Guerreiro descanse em paz”.

A caminhada é pelo cemitério da Consolação.

Meus passos não buscam sepulturas ou jazigos. Vou em direção ao portão dos fundos, que se abre para a rua Mato Grosso. É ali o ponto de partida do ônibus 7245.

Semana passada dividi com vocês as lembranças de quem já foi passageiro fiel de uma carioquíssima linha de ônibus: a do 433

Assim como não dá para dizer se rabada com agrião é mais apetitosa que arroz de polvo é impossível comparar as duas linhas. O que aproxima o 433 do 7245 é somente a minha intimidade. Sou dos que acreditam que a vida melhora se chamamos a garçonete da padaria pelo nome, se o vizinho sabe em que apartamento moramos. Faz diferença conhecer e ser conhecido.

Viajei três anos com Francisca e Everaldo no 7245. Ele ao volante, ela ao lado da catraca.

O destino sempre foi o paulistano Brooklin.

A viagem, de quase vinte quilômetros, leva quarenta e cinco minutos. Tenho um livro na bolsa, que muitas vezes deixo de lado para prestar atenção a quem também nos olha do lado de lá da janela.

Em suaves trinta e seis quilômetros por hora o ônibus desliza pelo corredor exclusivo.  Consolação e Rebouças estão congestionadas, com dezenas, centenas de carros parados com motoristas solitários. Enquanto Everaldo deixa todos pra trás, vejo o movimento nas barracas que vendem café da manhã. Garrafas térmicas coloridas, açucareiro de plástico. Numa mesa dobrável, um bolo já pela metade. Saboreia-se ainda pão francês com manteiga e misto frio a três reais, informa uma plaquinha. O Escort azul, estacionado a poucos metros, é a despensa.

A metamorfose urbana desafia a gente e alerta que se o trajeto é sempre o mesmo, o caminho muda porque a paisagem de ontem não é mais a de hoje. O que existia aqui mesmo, antes desse tapume verde? A loja de móveis, a lanchonete? Não, essas continuam de pé. O 7245, silencioso, acelera.

No lugar desse edifício novo, não há dúvida, talvez saudade. Está no chão a churrascaria gaúcha com suas costelas de ripa, que nunca provei.

Chegamos a Brigadeiro Faria Lima. Quem sentou, sentou. Francisca avisa:

– É o último ponto antes da Eusébio Matoso, acesso pro Morumbi, Taboão e Embu das Artes.

Nessa avenida larga de calçadas fartas e torres espelhadas, mora o tal do Mercado, o Mercado Financeiro, é o que dizem.

Pela janela do 7245 a ostentação que enxergo é outra. Uma, duas, várias lojas de uniformes domésticos. Fardas, como chamam. Nas coberturas ou mansões vizinhas, é preciso vestir mordomos, motoristas, copeiras, governantas. Governantas e mordomos, sim, eles ainda existem, escondidos em palácios e castelos.

A campainha me avisa: se a fila anda, a catraca também gira.

Mais gente entra do que sai, falta pouco pro ônibus lotar.

Francisca levanta a voz:

– Senhora, o lotação pro terminal Capelinha é daqui a duas paradas.

– Pra pegar a linha lilás do metrô é melhor esperar chegar na Berrini, viu amigo?

Se alguém duvida da importância do cobrador é porque não anda de ônibus.

Vento de chuva sacode as últimas palmeiras da Vila Olímpia.

Já há lugar pra sentar e Francisca me pergunta.

– Ué, passou do ponto?

– Hoje vou até a parada final. Curiosidade.

O Brooklin e sua Berrini, irmã caçula da Faria Lima, já foram. O ônibus nos leva a outra São Paulo. O monotrilho inacabado, rios abafados e escondidos por avenidas com nomes que quase não cabem nas placas, calçadas áridas e estreitas.

Estamos quase no ponto final, o terminal Santo Amaro, na populosa zona sul.

Todos já vimos notícias sobre o caos no transporte. Não é o que acontece no terminal. O horário de pico já foi. Será por isso que ando folgado pelas plataformas limpas e bem sinalizadas? O trabalho dos ambulantes é permitido e um painel eletrônico confirma a previsão de chuva à tarde. Há vários funcionários para orientar os passageiros.

No Brasil e no mundo o jornalismo não dá atenção ao que funciona bem. Nunca vi e acho que nunca assistirei a uma reportagem sobre quando e onde o transporte público é pontual, seguro, confortável.

Embarco de volta, agora com outra dupla no volante e na catraca. O jovem e tatuado cobrador me olha surpreso quando começo a falar sozinho: rua do Estilo Barroco, rua do Cancioneiro Popular, Jardim Nakamura, avenida Sabará, M’Boi Mirim. Não são nomes pra esquecer.

9: 57 é o que marca o pontualíssimo relógio do 7245 e há lugar pra todos. Agora, o que mantem o livro fechado está aqui dentro.

– Aê, quem tá vivo sempre aparece.

– Poxa, quanto tempo, Dirlei. A mulher abaixa a máscara pro sorriso aparecer.

– Você mudou de horário? Nunca mais te vi.

– Saí do hospital.

– Eu continuo de garçom. Ó, fica com o meu contato. Saudades.

– Eu também, a gente se acostuma viajando junto todo dia, né?. Sabe que no início eu estranhava. Dirlei, vou lá pra perto da porta que desço no próximo. Tenho uma entrevista de emprego.

– Boa sorte, Silmara.

Viajo ao lado de uma mulher bem perfumada. Ela levanta ligeira para abraçar a amiga que acaba de entrar.

Troco de lugar e as duas agradecem. Pra elas, há muito o que falar. Pra mim, basta ouvir

– Como foi ontem?

– Mais ou menos. Ele chegou, disse que estava cansado e foi dormir.

– Poxa já tem mais de duas semanas e nada?

– Que duas, amiga. Quase quatro. Nem beijar direito ele me beija.

– O que ele diz?

– Não diz, fica o tempo todo digitando a porcaria do celular. Tô com medo. Gosto dele.

– Relaxa, o que tiver de ser vai ser. Vamos falar de coisa boa, Fê. Sabe aquele pão que eu aprendi lá com o pessoal da igreja? Fiz agora cedinho. Amanhã trago um pedaço, daí devolvo o pote que você me deu com o bolo.

– Que delícia. Aposto que ele vai querer. Quem sabe se anima? Olha aí, ele tá me mandando mensagem.

– Se eu fosse você nem lia.

Dois homens digitam seus celulares e, de repente, param.

– Ontem você não pegou o das 9:44 ?

– Ontem peguei foi água, mano.

– Como assim?

– Choveu pra caramba, minha casa alagou. Do quintal pra sala não deu nem cinco minutos. Maior terror. Subi mesa pra cima do colchão, cadeira pra cima da mesa. Tevê e computador pra cima das cadeiras.

– Dormiu onde?

– Essa foi a parte boa.

– Desembucha.

– A gente foi dormir no carro e matou saudades. A noite foi de lua cheia como há muito tempo eu não via. Solange adorou, disse que não gosta de rotina.

– Mulher tem cada uma.

A Rebouças está em seus últimos pontos. Discretos, motorista e cobrador falaram pouco durante a viagem. Nos dez minutos finais, diante do solitário passageiro, destravam a língua.

– Pô, cê viu aquele cara fortão sem máscara?

– E aí?

– Falei pra ele. Pode botar a máscara, por favor? Ele botou, passou na catraca, sentou aqui bem perto, tirou a máscara e ficou me encarando.

– É mal educado que nem “esses trouxa que fecha o cruzamento”. Embaça o bagulho. Queria “ver eles dirigir” um pesado desses. Amanhã você vai no churrasco do pessoal da manutenção?

– O que tem que levar?

– Quatro latas e vinte reais para inteirar a carne.

– Eu vou. Aliás, não comenta com ninguém. O encarregado de lá me chamou pra trabalhar com eles, mas prefiro a catraca.

Interrompo.

– Tchau, obrigado.

– Tchau.

– Volte sempre.

Desço os degraus, é o fim da viagem. Transporte público cansa, atrasa, é caro. Mas pode acreditar, também ensina, diverte, humaniza. Palavra de passageiro.

São 10:46. Estou de volta às alamedas de ciprestes, jacas e letras douradas.

As rolinhas foram dar uma volta.

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