Chove lá fora, toró. A cidade inundada, submersa, mata a primeira empresária dentro de um Automóvel de luxo, coisa rara. Árvores caem, morros escorregam, casas despencam, automóveis boiam, motocicletas do Rappi se desfazem. Vejo tudo pela televisão, nos telejornais locais, uns sensacionalistas, outros não. Não desgrudo os olhos na tela. Vejo muito desespero, choro, perdi tudo que tinha. O tudo é muito pouco, quase nada, mas não sai da cabeça aquela geladeira, nova ainda, faltando dois boletos pra quitar, os últimos, geladeira comprada na Magalu. Durante alguns minutos, a televisão vira um muro das lamentações, e com razão. Vejo o Jardim Pantanal, todo início de ano debaixo d’água. As imagens são as mesmas, barquinhos improvisados indo e vindo de lá pra cá, onde outrora fora uma rua, com nome e tudo. Moradores reclamando das autoridades, aquela história de que eles só aparecem aqui em época de eleição, aquele lamento de que eu quero justiça e uma pergunta no ar: pra onde eu vou agora? As notas-pé dos apresentadores dos telejornais locais são também as mesmas. A prefeitura já gastou não sei quantos milhões em infraestrutura, já limpou não sei quantas mil bocas de lobo e pretende gastar mais não sei quantos bilhões nos próximos anos para recuperar o Jardim Pantanal, o bairro que leva o mesmo nome do lugar que entrou na lista da Time magazine esta semana como um dos mais espetaculares do planeta Terra, um dos lugares mais fantásticos do mundo. Aliás, o Fantástico hoje à noite certamente vai mostrar a agonia de quem mora no Pantanal. No Jardim Pantanal.
[A ilustração da capa é de Art Spiegelman]
Hoje cedo, assim que levantei a manga da camisa do lado esquerdo para tomar mais uma dose de vacina no postinho do SUS, na Lapa, já fui logo fazendo careta.
– O que é isso, senhor? Está com medo? caçoou a enfermeira, bem novinha, da idade da minha neta.
Fui logo dizendo: eu não tenho medo, eu tenho um verdadeiro pavor de injeção, qualquer tipo de injeção, seja no braço, na bunda ou na barriga.
Ela colocou a vacina na seringa, me mostrou que a dose estava certa, mas eu nem quis ver. E disse:
– Relaxa, senhor!
E eu nada de relaxar, meu braço parecia um tronco de eucalipto. Mas acabei relaxando e tomando a vacina.
É tiro e queda. Depois de receber qualquer picada, basta eu dar uns dois passos, que já me sinto meio febril. Isso já virou chacota aqui em casa.
Eu abro a porta depois de retirar sangue, minha mulher vai logo perguntando:
– Tá febril?
E eu juro que estou.
Não sei porque tomava tanta injeção quando criança. Mas era tanta, que até hoje sinto o cheiro de éter lá naquele cômodo apertadinho no fundo da Farmácia Nossa Senhora do Carmo. Enxergo aqueles estojinhos de alumínio fervendo juntamente com as seringas, que não eram descartáveis, até arrepio.
Acho que pra minha mãe, qualquer problema que qualquer um dos cinco filhos tinha, bastava uma boa dose de Benzetacil na bunda. E Hormínio, o farmacêutico, sabia disso. E caprichava na dose.
E não é que a gente melhorava?
Naquele tempo, pais sem psicologia nenhuma, costumavam dizer a seus filhos que se eles não comportassem, não parassem de fazer bagunça, eles iam na farmácia pra tomar uma injeção.
No meu tempo era assim.
Quem tinha coragem de continuar a briga de travesseiro, com paina voando pra todo lado, sabendo que o castigo seria uma injeção.
Pensando com os meus botões, fico imaginando uma mãe chegar com o filho na farmácia hoje e pedir pro farmacêutico da uma injeção no menino porque ele está fazendo muita bagunça.
Resumindo: estou aliviado, vacinado contra a Covid, são e salvo. Só estou me sentindo um pouco febril…