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Minhas avós, que nunca se entenderam, bateram boca por causa da cor da cortina da sala.
Uma jurava que puxava pro carmim, a outra decretou com certeza inabalável: é grená.
Lili chamava de rubro, Nonô preferia encarnado e assim seguiram discutindo por muitos e muitos anos.
O volume das vozes subiu, faces se enrubesceram e para evitar o pior, do vermelho e seus sinônimos não mais se falou naquela casa.
Meu vermelho preferido tem data marcada. Entra em cena no fim do verão, se espalha e domina a paisagem no outono.
Um vermelho singular, com perfume e sabor.
Não é vermelho urgente, como sangue ou luz de sirene.
Nem provocante como batom, cereja ou groselha.
Muito menos escandaloso como o da camisa do América carioca, da bandeira do colorado gaúcho ou da ardida malagueta.
Tem ainda vermelho invasor, entra na alma e pronto: vermelho de nervoso, de raiva, de vergonha.
E o desespero de entrar e não mais sair do vermelho?
Não, não, nada disso. O vermelho que espero contando os dias é suave. Chamo de escarlate porque tem um toque alaranjado. Esse – o escarlate – é o vermelho do caqui. No país tropical de tantas safras coloridas a dessa fruta, é presente que cruzou oceanos. Embarcou com os japoneses no início do século passado.
O caqui brasileiro começou paulista, pelos campos de Mogi das Cruzes, depois frutificou em planícies mineiras e hoje é pomar de norte a sul. Nesses dias de lavoura escarlate com árvores carregadas, o caqui vende mais do que mate gelado na praia de Ipanema.
Já fiz as contas: uma caixa com meia dúzia, custa três reais no fim da feira. Cinquenta centavos cada.
E não é o preço, é o sabor que conta. Lave com água corrente um caqui rama forte, aquele bem redondinho, de casca fina e núcleo macio. Abra em dois ou em quatro e aprecie sem moderação. Pra mim, a melhor de todas as frutas, sem falar da cor.
Dócil, doce, levemente gelatinoso. São esses pedaços, ou flocos, os mais suculentos, de caldo denso. Preciso de pelo menos dois para começar uma manhã de outono. Costumo comer as cascas e lamber os dedos.
Tão gostoso quanto sentir o miolo fresco de um autêntico rama-forte é ouvir as sábias explicações de Takanoli Tokunaga, estudioso, professor e agricultor há décadas.
O homem capaz de conversar com a terra, as plantas e o vento, brinca comigo quando pergunto sua idade.
– Tenho 28 ao contrário.
– E eu 16.
O jovial Tokunaga se diverte e conta que o caquizeiro passa o ano triste, sem folhas, seco, moribundo. Pura enganação. Quando a energia guardada na hibernação aflora, garante boa colheita com chuva forte e o calor do verão. Caquizeiro frondoso pode produzir 40 quilos de fruta e fazer aniversário de 70 anos.
Lembro de um amigo bem urbano e também apaixonado pela cor e sabor do caqui. Ele se mudou para uma chácara com dois caquizeiros no pomar. No fim do verão, chegou a sonhar em pegar o caqui no pé. Faltou combinar com os moradores mais antigos.
A sabedoria dos sanhaços indicava pelo cheiro e aparência do quitute o momento certo da primeira bicada. Daí pra frente, o farto café da manhã, o almoço generoso e o lanche da tarde para chamar o sono. Bem nutridos, os comilões azulados partiam em feliz revoada.
Tirar do pé ainda verde para amadurar em casa não adiantava, muito menos embrulhar a fruta num saquinho, como ele chegou a ler numa história em quadrinhos na infância distante.
O novato homem do campo reconheceu a impotência diante do adversário. Passou a acordar cedo e esperar as primeiras bicadas dos sanhaços. Só então comia a parte da fruta que sobrava. Saborosíssima por sinal.
Tokunaga me revela um segredo. O tanino deixa o caqui com aquela sensação ruim de sica. Tão amarga e grudenta que ninguém consegue comer. É uma defesa da fruta para afastar as pragas. Porém, quando esse amargor permanece na fruta, a solução é um banho de pinga. Em contato com a cachaça por até dois dias, a fruta perde a marra e fica deliciosamente doce.
Diante de um caqui bem geladinho e de reluzente escarlate, me pergunto: será que a pinga também tira marra de gente?
Cachaça, assim como caqui, adorada por japoneses e brasileiros, é capaz de benefícios magníficos. A depender da qualidade e quantidade, abre o apetite, ajuda o bom humor e chama o sono. É o que dizem. E com os marrentos, os amargos e ranzinzas, qual será o resultado?
Pergunta difícil até mesmo para o professor Tokunaga.
*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.