Minha geração está vivendo uma extraordinária e emocionante revolução, a da negritude. Estamos vendo o preto crescer, discutir, enfrentar, ocupar espaços, brilhar. Sou de um tempo em que pintavam atores de preto atores brancos para interpretar escravos em filmes e novelas. Sou do tempo em que nunca víamos uma mulher preta na capa de uma Claudia, de uma Marie Claire, de uma Elle, por exemplo. Sou do tempo em que, por aqui, mulher preta só estava na capa da revista Raça. E, na terra do tio Sam, na Ebony. Vivi para ver Paul McCartney ao lado de Stevie Wonder no piano cantando Ebony and Ivory living in perfect harmony. Hoje, ligo a televisão e vejo pretas e pretas em anúncios da Caoa, do Santander, da Tim, da Budweiser, e também discutindo assuntos da maior importância. Vejo pretos e pretas falando de economia, de política, de futebol, de ciência, de racismo, dos tempos de nuvens de chumbo. Pretas e pretos estão apresentando telejornais, dirigindo reuniões, sendo protagonistas de peças, organizando o movimento no planalto central do país. Acabou! Acabou! Acabou aquela história de preta só aparecer em novelas segurando bandejas, servindo brancos, varrendo o chão, passando um paninho em cima da mesa. Dizem que a luta é longa, árdua e que ainda tem muita batalha pela frente. Não resta a menor dúvida. Por incrível que pareça, o racismo insiste em existir. Eu me lembro que nos anos 1990, colocamos no ar em um telejornal que eu dirigia, uma reportagem com um preto. Ele ligava para uma escola de natação e diziam que tinha sim, vaga para todos os horários. Quando ele se apresentava para se matricular, vinha uma desculpa esfarrapada, tipo não temos vagas no momento. Que racismo era aquele que tinha medo de colocar um preto dentro da piscina ao lado de um branco, na mesma água? Viva Celina Veiga! Viva Maria de Lourdes Rosário, viva Noêmia de Campos, Clementina de Jesus, viva Edmeia da Silva Euzébio e sua luta incansável à procura de seu filho, Luiz Henrique, que desapareceu misteriosamente no dia 26 de julho de 1990, numa casa perto de Magé, Quase ninguém se lembra disso. (AV)
Outro dia, eu perguntei pra minha sobrinha se ela conhecia, ou se ela sabia quem era Rita Lee. Ela pensou, pensou, olhou para um lado, pro outro, e soltou essa:
– É aquela velhinha?
Aí eu fiquei pensando que, pra mim, Rita Lee ainda é aquela menina sapeca, mutante, ovelha negra da família, rainha do rock. Cabelos loiros escorridos, um leve toque de sardas no rosto, calça Lee desbotada ou vestida de noiva cantando astronauta libertado/minha vida me ultrapassa/em qualquer coisa que eu faça.
Quando morreu Juca Chaves foi a mesma coisa. Perguntei pra um, pra outro, ninguém sabia mais quem era Juca Chaves.
Pois é. Gente jovem reunida, na parede da memória, esta lembrança é o que dói mais.
Envelhecer é lembrar de muita coisa, muitas pessoas e sentir uma certa agonia quando alguém não sabe quem é, quem foi.
Eu curtia muito Juca Chaves. Me lembro dele desde os tempos em que cantava modinhas: o meu coração caminha/fatigado de emoção/ ao seu coração Verinha/que ao encontro vinha/do meu coração.
Eu me lembro dele desde que cantava meu violão morreu/saudades de alguém e quando ele morreu ninguém chorou/ ninguém. Eu me lembro de Por quem Sonha Ana Maria tocando no rádio: na alameda da poesia/chora rimas ao luar/ madrugada e Ana Maria/sonha sonhos cor do mar.
Depois vieram as sátiras. Presidente Bossa Nova, Caixinha Obrigado, aquela… o Brasil já vai a guerra/comprou porta aviões, um viva pra Inglaterra de 82 milhões, ai que ladrões.
Se Roberto Carlos cantou Jesus Cristo, ele atacou de Jeová: Jeová, Jeová, olhe também pra mim/eu estou mais pra lá do que pra cá. Se Jorge Bem (que ainda não era Benjor) fez sucesso com País Tropical, Juca veio de Paris Tropical: alô Brasil/alô Simonal/moro e namoro em Paris tropical. Se Paulo Diniz cantou I want to go back to Bahia, Juquinha compôs Hey hey di di/take me back to Piauí.
Eu me lembro quando Juca Chaves comprou um circo, até disso eu me lembro. Eu me lembro da pisada na bola que ele deu, quando compôs Bom dia, seu Arthur, bom dia! pro ditador Costa e Silva. Perdi o contato com o Juca quando fez uma musiquinha elogiando a Lava Jato. Deixa pra lá!
A gente vai ficando velho e é assim mesmo. Lembra de tanta coisa, vai acumulando fatos e pessoas e hoje, mas hoje a história é outra.
Será que minha sobrinha sabe quem foi Geraldo Vandré?
Será que ela sabe que um dia Raimundo Sodré sacudiu o Maracanãzinho cantando a massa da mandioca?
Será que ela sabe quem é Kiko Zambianchi, Arrigo Barnabé, Robertinho de Recife, Dulce Quental, Paula Toller, João Penca e os Miquinhos Amestrados?
E os Engenheiros do Hawaii?
Sim, estou velho. Eu me lembro do Papa Pio XII, da inauguração de Brasília, do bonde Sion, do monoquíni, do Kadett, do Bambam no BBB1…
Outro dia, poucos dias atrás, eu cheguei numa rodinha e disse: O Theo de Barros morreu!
Quem?
O Theo de Barros, o compositor de Disparada! Prepare o seu coração/pras coisas que eu vou contar/ eu venho lá do sertão/ e posso não lhe agradar….
Oi?
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