O SOL DE SEXTA-FEIRA 17.03.23

O SOL lembra que no dia seguinte a sua posse, o então prefeito, João Doria, bradou ao SPTV1: “A Cracolândia acabou!”. Quem acabou, na verdade, foi João Doria.

Fechado!

A guerra está no ar!

Isso não vai dar certo!

A economia na ordem do dia

Escuta só: isso não vai dar certo!

É o tal do negócio da China

O progresso da Ciência

 

meia capa…

 

Tem chuva que molha. Tem chuva que mata.

10 milhões de brasileiros pensam no pior quando as nuvens escurecem. É a população de áreas de risco. Um país como Portugal, pendurado em morros, apertado em barracos ou jogado na rua.

Repito. 10 milhões de brasileiros.

Muitos motivos transformam chuva em tragédia. Tantos que não cabem aqui.

Não era pra ser assim. Chuva é bênção, é vida, é fartura, uma dádiva, já ouvi muita gente boa repetir.

Da chuva leve, dessa que refresca e até alaga aqui e ali eu não gosto. Eu adoro.

Adoro quando chega com música no telhado; com perfume que floresce da terra molhada.

Da calçada quente brota um calor gostoso, como respingo na frigideira.

Vem com vento, vem de repente, vem como quer. Ninguém manda na chuva.

Comigo o primeiro pingo é no ombro. A gota serena nunca me acertou na ponta do nariz ou na orelha, é no ombro que ela mira.

A gente se faz de bobo.

– Que chuva que nada. A gota é de ar condicionado ou árvore.

A água vem do céu, mas a gente vê é no chão as marcas redondas dos primeiros pingos.

O povo corre, o trânsito para. O sinal encrenca. Motorista não gosta de chuva. Marronzinho da CET também não. Tudo parado e ninguém para orientar.

Polícia menos ainda, já reparei. Difícil ver as viaturas com suas sirenes, os militares fardados. Pra onde vai a tropa durante o temporal?

Sorte que a bandidagem também tira folga. Se pode roubar no sol quentinho pra quê molhar o sapato?

Chuva miúda também dá sumiço em motoristas de aplicativo, taxistas e, principalmente, nos passarinhos. Onde se escondem os urbanos sabiás e rolinhas? Pombos, tantos e tão famintos, em que freguesia vão arrulhar?

Dia desses peguei um temporal de chofre. Chuva grossa e com vento.

Na Refrigeração Silva, Carolina, Robinson e equipe consertam geladeira, máquina de lavar e torradeiras. Ali, pedi pouso embaixo do toldo. Espiei a sede dos bueiros, um guarda-chuva revirado pelo vento e quando menos esperava, Carolina ofereceu café feito na hora. Quente, forte, doce. Como não gostar da chuva?

Ainda em fuga, entrei numa loja de 9,99. Espremedor de frutas, potes, cestos, cama pra cachorro. Lá no fundo, o dono, um senhor chinês, ouve a principal rádio de Pequim. Pergunto qual a novidade e ele me diz em português quase fluente.

– Chegaram tigres no zoológico lá da cidade.

E em seguida, enquanto embrulha os dez envelopes que comprei.

– Se “pudé pagá dinheiro, bom, né? Cartôn, ruim, né”?

Do outro lado da rua das Palmeiras, na Vila Buarque, almoço em promoção. 20 reais à vontade. O motoqueiro que escapou da tormenta pendura o capacete, espalha álcool nas mãos e se serve.

Senhoras e senhores, imaginem uma pirâmide. Uma base consistente de feijão com arroz, farofa e batatas coradas. Tudo bem socado. Depois nacos fartos de coxão duro, é o picadinho. Acima, uma coxa graúda de frango e dois taludos cortes de costela bovina. Alface picada, tomate e beterraba em doses modestas completam a obra de arte.

Impossível tocar nas carnes, que estão equilibradas. Então, como se tomasse uma sopa fervendo, o motoboy vai pelas beiradas. Cuidadoso, recolhe o arroz, enxuga o feijão, belisca a batata. A montanha começa a baixar e o ataque é frontal. Em dez minutos restam os ossos lisos da coxa e da costela. Ele se levanta, vê que a chuva continua e volta pro segundo tempo. Chegou a vez do espaguete à bolonhesa.

Como não gostar da chuva?

Percebo que até o jeito de falar muda nessas tempestades.

Que delícia era ouvir um locutor de rádio que gritava.

– Chove a cântaros no colosso do Arruda.

E que alegria escutar o improviso poético que partia do campo do Gigante da Colina.

– Em São Januário, as nuvens choram copiosamente.

Uma outra, íntima de minha avó, até hoje é um enigma pra mim.

– Chove canivete.

Alagamento na praça da Bandeira, grama encharcada no Maracanã, pista pesada no turfe, ressaca em Copacabana. Era e ainda é assim no meu Rio.

São Paulo, Belo Horizonte e tantas outras capitais importantes também choram quando a água sobe e rios transbordam.

Não é chover no molhado. Temporal e chuvisco foram e ainda são fonte pro melhor da MPB.

A Chuva de Prata da Gal com beijo molhado.

O Chove Chuva de Bem Jor clamando que a água não molhasse o seu amor.

Também seguiram a corrente Guilherme Arantes e tantos outros. O leitor e a leitora lembram do Planeta Água com seus igarapés e cachoeiras?

Sobretudo nesse mês, como não cantar as Águas de Março fechando o verão, clássico do nosso maestro maior.

Eu e meus irmãos, ainda meninos, nos divertíamos num dia molhado qualquer:

– Chuva e sol, casamento de espanhol.

– Sol e chuva, casamento de viúva.

Então. meu pai nos contou uma inacreditável novidade, a chuva com hora marcada.

– Meninos existe uma cidade lá na Amazônia em que é sagrado. Todo dia, às três da tarde, a água cai.

– Como chama esse lugar, pai?

– É Belém. Lá, o pessoal diz assim: te encontro depois da chuva, ou então, vou passar no dentista antes da chuva, tudo bem?

Nosso pai era sujeito sério, mas levamos décadas para acreditar na pontualidade da chuva paraense.

Aqui em São Paulo muita água passou por cima da ponte e nesse verão, tal qual em Belém, toda tarde é encharcada. A cidade espera a moça do tempo no telejornal só para saber se o que vem depois do almoço são as tais “pancadas isoladas de chuva” ou aguaceiro.

O jeito de falar também muda, os verbos da chuva são sazonais. Como as carambolas, se multiplicam no verão.

Inundar, alagar, encharcar, afogar, arrastar, desabar, trovejar

Quando as luzes se acendem o asfalto úmido é prata, reflete faróis, lanternas, lua e estrelas, como no cinema.

Na tela menor, conheci uma das mais inspiradoras das tantas histórias de chuva. Ângelo, com menos de trinta anos e à beira da morte, tinha num transplante dificílimo a última chance. Venceu e teve alta depois de um mês na UTI. Aí, revelou ao repórter Carlos Dorneles o que mais queria fazer na nova vida.

– Meu maior desejo é tomar um banho de chuva.

Festejar a vida com o frescor de uma garoa. É isso que 10 milhões de brasileiros esperam. Que a chuva apenas molhe. Que seja vida. É esse o desafio.

*O escritor Luiz Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.