JANELAS ABERTAS

Fala-se muito, discute-se muito, inventam, mentem, burlam as leis, chutam, mas não conseguem eliminar o diabo do coronavírus do planeta Terra. Aos poucos, o mundo vai mostrando que as pessoas não estão preparadas para parar a vida e esperar a vacina. Vão aos shoppings, vão às barbearias, às academias, aos pancadões. As pessoas estão mais para jogguing do que para yoga. Pobre planeta Terra que já perdeu 1.150.241 pessoas desde que o corona mostrou sua cara aos infectologistas. Cinquenta anos depois, parece que os brasileiros levaram a serio aquele grito do Tom Zé em seu primeiro disco: Não se morre mais, cambada! 

[ilustração Ronald Kurniawan]

A IMPORTÂNCIA DE, DE REPENTE, PARAR PARA PENSAR

Desde o início da pandemia, meados de fevereiro, por aí, aproveito alguns minutos do dia para pensar. Paro tudo. Às vezes penso deitado na rede na pequena varanda do meu apartamento, às vezes penso aqui mesmo no meu escritório, na cama, debaixo do chuveiro, não importa onde.

Quando digo parar pra pensar, é não fazer nada mesmo, ficar olhando, observando as coisas em volta. A parede cor de rosa, o céu, o fio de sol que entra pela janela, retomar as lembranças, passar a limpo.

Lembranças de um velho apartamento na Rue de la Roquette, uma rua comprida que saía da Bastilha e ia até o cemitério de Père-Lachaise, onde estão enterrados o Serge Gainsbourg, a Edith Piaf, Chopin, Jim Morrison e tantos outros.

Era ali naqueles quarenta metros quadrados de um apartamento alugado por 350 francos mensais que cultivava meu exílio, escrevia cartas freneticamente, recortava todos os dias as notícias importantes do Le Monde, empilhava os exemplares da Nouvel Observateur, ia lendo uma a uma as revistas Planeta que chegavam do Brasil, presente de um primo jogador, depois técnico de basquete.

Foi ali que ouvi pela primeira vez os discos Joia e Qualquer Coisa, que conheci a voz de Belchior falando do antigo compositor baiano, foi ali que treinei meu inglês ruim com Walter Franco: Nothing/To see/ Nothing/To do/Nothing/Today/About me/I’m not/ Happy now/I’m not sad/ I’m just/ Happy now/Looking/ To the empty space.

Grana curta, tinha poucos vinis guardados numa caixa de vinho de cor laranja. Ouvia George Harisson cantando Dark Horse e Jean Michel Jarre viajando em Oxygène, que aprendi a gostar graças a um artista brasileiro, hoje um velho bolsonarista.

Ali, lia e relia Fazenda Modelo do Chico e as aventuras de Werner Herzog caminhando sobre o gelo, de Paris a Berlim, para encontrar uma amiga doente terminal. Traduzia do italiano teoremas e poemas de Pier Paolo Pasolini, os versos guerrilheiros de Dom Pedro Casaldaliga, a obra de Julian Beck e Judith Malina, que conheci num Festival de Inverno de Ouro Preto que, em Paris, que morria de saudade.

São muitas as lembranças. A carne moída com milho verde e o arroz parbolizado nos saquinhos do Uncle Bens que fazíamos toda semana, cozinheiros de primeira viagem

Os amigos eram poucos e bons. Um que colecionava parafina da embalagem do queijo BabyBel para fazer vela, outro que caiu no Sena de madrugada e conseguiu sair do outro lado sem perder os tamancos suecos.

Tomávamos vinho de clochard comendo torradas com camembert Président. Sonhávamos com o fim da ditadura lendo as cartilhas coloridas da Maspéro, enquanto escrevia para jornais e revistas alternativas. Esperava ansiosamente o carteiro que passava todos os dias religiosamente às sete horas da manhã vestido de azul marinho e me dizia: Rien pour vous, Monsieur Villas! Comia barras de chocolate de Ovomaltine sem a menor preocupação de aumentar o peso que era em torno de cinquenta e poucos quilos. Tinha uma mobilete amarela guardada na cozinha, que nunca montei.

Era ali no décimo primeiro quarteirão de Paris que muitas vezes, enrolando minha juba de leão, ouvi Cely Campelo pra não cair.

 

MULHER LENDO

Eu era menino ainda quando vi uma propaganda nas páginas da revista Realidade anunciando o lançamento da coleção Gênios da Pintura. Eu não tinha NCr$2.50 por semana para comprar aquele Van Gogh, o número 1, sequer para comprar os outros noventa e seis. Picasso, Kandinsky, Goya, Rembrandt, Monet… Namorava cada um nas bancas e quando Seu Benito estava lá, ele me deixava folhear, sem amassar, por favor! Foi assim que me apaixonei por esses pintores geniais. A cada museu que entrava e via uma obra ao vivo eu me lembrava dos Gênios da Pintura da Abril Cultural. Agradecia aos céus o privilégio de poder parar diante de uma obra o tempo que quisesse e ficar admirando. Nesse domingo de manhã me emocionei ao ver a postagem do meu amigo Apolo Heringer Lisboa, aquele com quem tenho uma grande história. A obra estava lá e apenas o nome: Mulher Lendo, Henri Matisse, 1908. Quando vejo uma obra pela primeira vez, a emoção não me segura. 

CÉREBRO ELETRÔNICO

É bobagem ficar imaginando o mundo hoje sem as modernidades que vieram com os anos. Computador, por exemplo. A não ser que eu me refugiasse na Fazenda do Sertão, que nem eletricidade tinha, para criar porcos, patos, marrecos, galinhas, cavalos. Plantar taioba, couve, escarola. Me desligar do mundo eu tenho me desligado por uns dez minutos por dia, ou mais. Às vezes, quando passo meia hora sem ter notícias das terra civilizada, quando volto tenho um milhão de mensagens, de novidades, de pedidos, de comentários, de piadas, de dicas, de boletos, de fatos, de fotos, de sustos. Aos 70 anos, não esperava ver o mundo assim, eu aqui dentro de casa de pijama até por volta das dez da manhã. Sou salvo pela música diariamente: eu vou-me embora, meu bem, vou-me embora. Eu aqui não me dou bem, ô viola! violá…

PROFISSÃO ESCRITOR

O melhor horário para escrever um livro é quando o céu ainda está escuro e o único barulho único é de um pássaro ávido por encasalar, que canta agoniado na árvore em frente a janela do meu escritório. Nessa hora da manhã, vivo entre e pássaros e páginas que ainda estão no computador, iluminando esse meu canto e o canto do pássaro. É quando a televisão ainda está desligada, o portão da garagem ainda não começou a fazer nhec, os ônibus não começaram a circular. É nessa hora que a pesquisa avança e os textos vão saindo. A pesquisa ainda é longa e esse metro e meio de livros empilhados na minha frente me assusta um pouco. Quero entrega a editora antes do final ano, parece que está longe, mas não. Daqui a pouco outubro, novembro e acabou. Por isso economizo palavras aqui para ganhar lá. Precisava dizer isso. 

ASAS DO DESEJO

 

Tenho uma verdadeira paixão por aves, de grande e pequeno porte. Menino, já fui criador de passarinhos e, com o passar dos anos, perdi a coragem de tê-los enjaulados. Fotografo aves desde pequenininho. Por onde eu vou tem sempre uma, parece que à minha espera. Tenho uma coleção de melros que circulam pelos parques de Londres, cada um mais bonito que o outro. Eclético, sou capaz de cantar Blackbird dos Beatles, misturando com Menino Passarinho do Luiz Vieira e Assum Preto, de Luiz Gonzaga. Sei de cor Coleção de Passarinhos na voz de Clementina de Jesus e Gaivota, de Gil, na voz de New Matogrosso. Esse casal de gaivotas foi fotografado em Barcelona e me encheu de curiosidade. O ninho deles fica no alto da torre, sem proteção contra a chuva. As gaivotas deviam ter certeza da temporada de seca. Os pássaros são muito inteligentes, eu sei. Os pombos possuem um sensor capaz de levá-lo de volta pra casa depois de uma simples revoada. Nós, foi preciso inventar o Waze que é um nome feio, mas é o melhor meio de se chegar.

[foto Alberto Villas]

OS DIÁRIOS ACUMULADOS NOS TEMPOS DE PANDEMIA

Eu sempre escrevi, desde aquele primeiro de janeiro de 1975, quando estava longe do meu país e achei que seria bom registrar o exílio. Escrevia à mão, depois passei pra máquina de escrever e agora escrevo aqui nesse computador. Hoje, por exemplo, quando saí cedo pra passear com o nosso cachorro, uma mulher caminhando ao meu lado disse que o Canela é uma graça. O nosso Canela é um vira-lata, mas é realmente uma graça. Ela contou que só passeia com o dela à noite, quando chega em casa depois do trabalho. Ele passa o dia no quintal que dá também pra varanda. Contou que ele adora enfiar o focinho na grade e ficar observando o movimento da rua. Mas agora mudou uma mulher para a casa do lado que está implicando com ele, ela não gosta de cachorro. Disse que ele devia ficar preso. “Ora, a casa é minha, moro lá há dez anos e não vou deixar ele preso. Se ela está incomodada, que se mude”. Antes de nos despedirmos, na esquina de Roma com Catão, ela concluiu: “mas eu não sou boba nem nada. Instalei uma câmera porque vai que ela resolve envenenar o Suck, não é mesmo?” Pronto, escrevi.

O que eu sentia pela Matemática era pavor, desde muito pequeno. Nascido para as Humanas, vivia noites sem dormir às vésperas de provas, vinham furúnculos e tinha febre. Era um rebelde que não se conformava em resolver equações que jurava serem inúteis para minha vida. Nunca aprendi a fazer uma raiz quadrada! Quando o boletim vinha nota vermelha em Matemática, o meu pai engenheiro não engolia. Eu argumentava: que dia na minha vida alguém vai me perguntar quanto é a raiz quadrada de 49? Não entendia também porque precisava saber quais eram os afluentes do Amazonas, a capital da Dinamarca e o que foram as Capitanias Hereditárias. Lembrei disso quando fiz um percurso de barco de Manaus até Parintins, passando pelos afluentes. Lembrei disso no dia em que pus os pés em Copenhagen, mas as Capitanias Hereditárias e a raiz quadrada de 49 estou tentando entender até hoje.

Todos em casa temos coração mole, a família inteira. Pai, mãe, filhos, netos, bisnetos. Não existe a palavra insensível por aqui. Não tem como ver alguém mexendo nos sacos pretos de lixo tarde da noite e ficar impassível, cara de paisagem. O coração mole parte em dois. Nas manchetes dos jornais, vejo a euforia com o crescimento do mercado imobiliário. Somos esquerdas demais pra não pensar nas vinte e cinco mil pessoas que moram nas ruas da maior e mais rica cidade da América do Sul. Não tem como ver famílias cujo teto é o viaduto Presidente João Goulart, a marquise da Marabá, o plástico tosco e rasgado daquela que um dia foi uma barraca de camping. O fogareiro na calçada esquentando água para um macarrão, uma flor de plástico em cima de um caixote de frutas selectas, um cão dormindo. Como um argonauta, meu coração não aguenta tanta tormenta. O Doutor Christian Barnard, um dia, trocou um pelo outro, mas era coração com aorta direita e aorta esquerda, aprendi no Marista. Outro dia, o meu irmão mais velho me chamou a atenção: já pensou que o coração da gente é uma máquina que está funcionando vinte e quatro horas por dia, há mais de setenta anos? Uma hora para, não tem jeito. Já cantaram o coração bobo, o coração vagabundo, o coração balão, o coração São João. E também o coração que, não sei porque, bate feliz quando te vê.

INFÂNCIA

Não tinha jeito, aquela maldita vareta preta sempre caia por baixo de todas as outras, verdes, amarelas, azuis e vermelhas. Eu tinha as mãos muito firmes, mas não era fácil chegar até a vareta preta, a mais valiosa. Eu tirava uma amarela com a delicadeza de um monte, uma vermelha com a perspicácia de tirar antes a verde, colada junto a ela. Todo Natal ganhávamos um jogo de Pega-Varetas novo que substituia aquele que passou o ano sendo jogado no chão da sala, já meio estropiado. A vida não era nada fácil: decorar Latim, estudar o significado em português da palavra francesa partout, saber a tabuada de cor, as capitais da Finlândia, da Suécia e da Islândia, entender o que eram as mitocôndrias, essas coisas todas. Desconfiávamos que não era a cegonha que trazia o bebê, mas não podíamos contestar. A gente fingia que Papai Noel existia, que o coelho da Páscoa botava ovo de chocolate, que Eva ofereceu uma maçã a Adão e que Noé colocou um casal de cada bicho na sua arca. Não condenávamos a Dona Chica que atirou o pau no gato e morríamos de medo do boi da cara preta que pegava menino que tinha medo de careta. 

OS COMPRIMIDOS

Menino ainda, fica impressionado com a quantidade de comprimidos que os meus pais engoliam todos os dias. Era na hora do jantar que eles vinham, cada um com a sua caixinha de remédios. O do meu pai era um tubo plástico com as indicações dos dias da semana, pra ele não se perder. A da minha mãe era uma potinho de prata com tampa de madrepérola. Eles abriam suas caixinhas e iam colocando os comprimidos em cima da mesa. Não eram muito velhos ainda, mas eu ficava pensando com os meus botões: porque gente velha toma tanto remédio? Não me lembro que comprimidos engoliam. Um, sei que era para pressão porque o meu pai lembrava minha mãe todos os dias: tomou o seu remédio pra pressão? Ela quase sempre tinha esquecido, mas tomava imediatamente. Hoje eu fico imaginando que deveriam ser remédios pro colesterol, pra ralear o sangue, pra tireóide, pra artrite. Hoje, aqui em casa é na hora do café da manhã que enfileiro meus remédios: Puran 25 mg, Reuquinol 400mg, Plenance 19 mg, Ezetimiba 10mg, Xarelto 20mg e Addera 1000. Pois é, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais. 

COISAS DA VIDA, MINHA NEGA

Fiquei sabendo que tem gente escrevendo muito nessa pandemia, gente que nunca escreveu está escrevendo. Diários, poesias, contos, escrevendo o que vem na cabeça. Eu sempre escrevi, desde aquele primeiro de janeiro de 1975, quando estava longe do meu país e achei que seria bom registrar aquele exílio. Escrevia à mão, depois passei pra máquina de escrever e agora escrevo aqui nesse computador. Hoje, por exemplo, quando saí cedo pra passear com o nosso cachorro, uma mulher caminhando ao meu lado disse que o Canela é uma graça. O Canela é um vira-lata, mas é realmente uma graça. Ela contou que só passeia com o dela à noite, quando chega em casa depois do trabalho. Ele passa o dia no quintal que dá também pra varanda. Contou que ele adora enfiar o focinho na grade e ficar observando o movimento da rua. Mas agora mudou uma mulher para a casa do lado que está implicando com ele, ela não gosta de cachorro. Disse que ele devia ficar preso. “Ora, a casa é minha, moro lá há dez anos e não vou deixar ele preso. Se ela está incomodada, que se mude”. Antes de nos despedirmos, na esquina de Roma com Catão, ela concluiu: ‘mas eu não sou boba nem nada. Instalei uma câmera porque vai que ela resolve envenenar o Suck, não é mesmo? Pronto, escrevi. 

A MATEMÁTICA

O que eu sentia pela Matemática era pavor, desde muito pequeno. Nascido para as Humanas, vivia noites sem dormir às vésperas de provas, vinham furúnculos e tinha febre. Era um rebelde que não se conformava em resolver equações que jurava serem inúteis para minha vida. Nunca aprendi a fazer uma raiz quadrada! Quando o boletim vinha nota vermelha em Matemática, o meu pai engenheiro não engolia. Eu argumentava: que dia na minha vida alguém vai me perguntar quanto é a raiz quadrada de 49? Não entendia também porque precisava saber quais eram os afluentes do Amazonas, a capital da Dinamarca e o que foram as Capitanias Hereditárias. Lembrei disso quando fiz um percurso de barco de Manaus até Parintins, passando pelos afluentes. Lembrei disso no dia em que pus os pés em Copenhagen, mas as Capitanias Hereditárias e a raiz quadrada de 49 estou tentando entender até hoje. 

BONITA COMO UM CAVALO

Nunca me esqueço daquela noite em 67. Chico Buarque apresentou Roda Viva, Caetano sua Alegria Alegria, Edu Lobo com Ponteio e Gilberto Gil, Domingo no Parque. No meio disso tudo havia o estudante de arquitetura chamado Maranhão, vindo de lá, com sua Gabriela. Afinados, quatro bambas da MPB cantaram: 

Atravessei o mar
a remo e a vela
fiz guerra e em terra
montei a cavalo
e em pelo de sela
cruzei as florestas, montanhas e serras
a lua sorria, eu sorri com ela
quando corria, eu corria dela
pulei cancelas, pulei quintais
deixei donzelas e tudo mais
quantas janelas ficaram atrás
só pra te ver Gabriela

Adolescente, me apaixonei por essa coisa de atravessar o mar a remo e a vela só pra ver Gabriela. Minha Gabriela era um amor oculto, só meu, escondido. Eu morava na parte de cima e a minha Gabriela, que não era Gabriela, na parte de baixo. Ficou nisso. No início dos anos 1970, eu já estava longe dessa Gabriela quando chegou pelo correio, presente de Paulo Augusto Gomes, o primeiro disco do Maranhão. Na capa, o seu perfil em branco e preto, destaque para o nariz e a boca. Sim, eu estava longe dela uns dez mil e poucos quilômetros. Foi quando ouvi naquele inverno rigoroso de Paris, a canção Bonita como um cavalo. Juntei Gabriela, que também estava no disco, com a beleza de um cavalo. Ao abrir as janelas dentro do meu coração ele enxergava ela, bonita como um cavalo caminhando ao luar. Passei a vida pensando naquela mulher, bonita como um cavalo. Passei a vida prestando atenção nos cavalos de Camargue, que vi um dia caminhando ao luar. Sim, ela sempre foi bonita como um cavalo. 

[ilustração/Guernica (detalhe), de Pablo Picasso]

 

O JOGO

Pimenta nunca poderia ter feito aquele gol aos 58 segundos do primeiro tempo. Pimenta era ruim de bola, não sabia driblar, chutava fora os pênaltis, mas naquele dia ele foi certeiro. O juiz apitou o início do jogo, Nenenzinho passou a bola pro Pimenta que soltou um Exocet dos pés e foi parar bem no anglo do meu gol. Sim, eu era o goleiro do time da Rua Rio Verde. Vestia uma camisa preta com o número 1 nas costas, calção e meias pretas, uma sunga Big por debaixo. Luvas e joelheiras, chuteiras da melhor qualidade. Estava devidamente paramentado para ser o campeão do Bairro do Carmo naquele 1960. O campo era de terra batida, as traves feitas de bambu, rede não havia. Se Barbosa sofreu em 1950, dez anos depois fui eu, totalmente desmoralizado aos 58 segundos do primeiro tempo. Não vi a bola passar e, caído no chão previa um dez a zero fácil fácil. A vida é assim. Em menos de um minuto, mudei o rumo da minha vida. Nunca mais peguei no gol, nunca mais vesti aquele uniforme preto, bonito, novinho. Desisti de ser goleiro e comecei a pensar em ser piloto de Fórmula 1. 

[ilustração Andrea Serio]

OS BOTÕES

Queria eu ter a simplicidade de um Leonilson, acordar cedo, passar a mão num pedaço de linho e bordar frases, desenhar corações que ficaram perdidos no meio do caminho, pregar botões, uns diferentes dos outros, fazer uma composição. Queria eu ter esse minimalismo, com a agulha e linha escrever devo, não devo ou quero, não quero. Desenhar flores, sapatos, mapas, malas, velas, estrelas, molas. Bordar uma cabra envolta em coroas e escrever a cabra expiatória bem mais magra observa o patético espetáculo da monarquia. Para isso, preciso abandonar todo o noticiário dos jornais, das revistas, da televisão, da web. Me recolher numa verdadeira quarentena e esperar o pesadelo passar. Onde você for eu irei com você, escreveu ele num dia não sei se de céu azul de sol, de céu cinza chumbo de chuva. O vírus era outro e não esse que mata mais de mil pessoas por dia. Mas levou Leonilson. Só me resta ficar aqui chorando com os seus botões.

 

UMA FRUTA

Ainda pequeno, eu tinha medo de maçã. Na sala de catecismo tinha um pôster na parede mostrando Eva oferecendo uma maçã ao Adão. Enquanto aprendia o Pai Nosso, a Ave Maria e a Salve Rainha, ficava com os olhos fixos naquela gravura, os dois seminus no meio do mato e uma serpente enrolada nos galhos. Tinha medo da maçã e da serpente. Depois passou. Passei a gostar das maçãs argentinas, vermelhas e cheirosas, embrulhadas num papel de seda azul, uma a uma, que um dia Caetano encontrou poesia nelas. Muitos anos depois, convivia com elas diariamente. Seis horas da manhã eu estava no Mercado Central de Belo Horizonte para comprar uma, duas caixas. Elas eram embaladas bem apertadinhas e me impressionava a cor branca da madeira que vinha dos Pampas e aquele cheiro maravilhoso que se espalhava dentro da Rural Willys a caminho da Savassi, onde eu tinha um carrinho de frutas que funcionava 24 horas, no coração da Praça Diogo de Vasconcelos. Era início dos anos 1970 e foi assim que juntei dinheiro para ir-me embora do Brasil, fugir daqueles hipócritas disfarçados rondando ao redor. Vendia, além das maçãs, peras, bananas, mexericas, mangas, abacaxis, morangos e, na época do Natal, pêssegos, ameixas e uvas Niágara encaixotadas. Hoje, tantos anos depois, continuo convivendo com as maçãs. Lavando uma a uma com água e sabão e depois secando com um pano de prato as mãos úmidas de uma canção.  

[ilustração/Gravura de Bia Melo]

MUSEU DE MIM MESMO

Fui juntando coisas, juntando, juntando e acabei criando um museu de mim mesmo. Hoje vivo rodeado de memórias boas e olha que só guardei as coisas boas, nada de ruim. Tenho um gato de porcelana bordado com motivos turcos pechinchado no Grande Bazar de Istambul, como tenho um coelhinho de plástico do América Mineiro, presente do Chico Regueira. Tenho três garrafas de cerveja – Marx, Trotsky e Rosa – que acredito eu já saíram de circulação. Tenho brinquedos antigos, um disco voador de 1960, uma placa metálica na parede onde se lê: Hippies Use Side Door. Tenho um pôster do Yuri Gagarin, um rádio de 1940, um Buda comprado na Feira da Ladra em Lisboa, um azulejo pintado pelo Peticov, um altar do Universo em Desencanto com a imagem do Tim Maia, tenho coisas que nem eu mesmo acredito que tenho. Quem mais teria um elefante enferrujado que veio lá da Fundação José Saramago? Quem teria uma caixa com sete cds da Yoko Ono? Quem teria um cachorrinho verde de porcelana comprado num antiquário em Havana? Não faz muito tempo, passei uma temporada num vilarejo no interior da Grécia, onde no meu inventário constava apenas um laptop. Acordava, olhava pela janela e via o mar azul, lá embaixo. Um pé de limão siciliano no quintal e um outro de abricôs carregado, na casa do vizinho. Eu não tinha bibelôs, nenhuma recordação. Além do laptop, agora estou lembrando, tinha também o livro 1968, da Ariana Fallaci, e um livrinho chamado 101 motivos para ser de esquerda, ambos em italiano. Estava vazio em Vryses e me sentia provisório ali. Hoje morro de saudade e queria viver provisório assim para o resto da vida. Vazio mas tão bonito quanto uma obra de Carlo Benvenutto, onde se vê apenas uma cadeira, uma mesa com uma toalha de algodão e três ovos. Nada mais. 

DEU BRANCO

Branco era o terno de John Lennon e o vestido curto de Yoko Ono no dia do casamento, naquele 1969. Branca era a hóstia que o padre colocava na minha língua de menino do Colégio Marista. Branca era a roupa lavada com Rinso. Brancas eram as asas do anjo que as meninas de Sabará colocavam nas costas pra participar da procissão. Branca era a pomba de Picasso, as penas do albatroz que fotografei no porto de Callais, a capa do álbum duplo dos Beatles. Brancos eram os ovos nevados que o meu pai fazia nos dias de domingo. Branquinho era o líquido que passávanos no papo para corrigir os erros da máquina de escrever. Branco era o giz de Mister Elcio no Colégio de Aplicação. Branca era a toalha de linho que minha mãe colocava na mesa uma vez por ano, na noite de Natal. Brancos eram os mocassins dos playboys da Augusta, dos malandros da Lapa. Branco era o meu tênis Bamba. Branco é o leite das crianças, o queijo fresco vindo lá de Minas. Branco é Joaquim Claudio Corrêa de Mello Junior, baixista dos Titãs. Branca é o nome da empregada da minha irmã mais nova. Branco é o meu All Star que está sem uso há seis meses, lá no fundo da sapateira. 

[ilustração/”White on White”, obra de Kasemir Malevich]

OBRAS QUASE COMPLETAS

Plantar uma árvore, já plantei. Um chorão que semeei no quintal da Rua Rio Verde e que virou uma frondosa árvore. Plantei também uma ameixeira na varanda do apartamento na Avenida Higienópolis e que está lá até hoje, vejo quando passo. E plantei um abacateiro na varanda do meu apartamento aqui na Lapa. Já está com mais de um metro de comprimento e minha mulher quer que eu tire ele de lá porque, com algumas folhas amarelas, ela acha que ele, no vaso, não cresce mais que isso. Tento resistir, argumento que o abacateiro serás sempre meu parceiro solitário nesse itinerário da leveza pelo ar. Ter um filho, já tive, quatro! Todos adultos, crescidos, os meninos estão todos sãos. Dois nasceram em Paris, dois em São Paulo. Um menino, três meninas, todos parecidos, prontos para enfrentar a vida. Escrever um livro, já escrevi, nove! E estou escrevendo mais um. Minha obra ainda está incompleta. Trato do meu novo livro como tratava daquele chorão na Rio Verde: aguando todos os dias um pouquinho para não deixar a terra muito seca. Trato como tratava dos meus filhos, dando papinha, trocando fralda, colocando panos frios na testa nas madrugadas de febre, ensinando o que foram as capitanias hereditárias. Acabo de completar setenta anos, mas, como dizem que a vida começa aos quarenta, sinto-me feliz com os meus trinta anos, com minhas árvores, meus filhos, meus livros.  

THE BOOK IS ON THE TABLE

Há seis meses estou aqui matutando como arrumar todos esses livros na biblioteca. Já pensei em tudo. Tirar um por um, espanar, catalogar. Já pensei em separar por assuntos, por ordem alfabética do autor, ordem alfabética do título. Já pensei até em eliminar uns, doar, encadernar outros, os estropiados indispensáveis. Há seis meses penso nisso. Só penso, nunca coloquei a mão na massa. Andei bisbilhotando prateleiras que não via há muito tempo. Achei a primeira edição de Fazenda Modelo, do Chico, lá dos anos 1970. Achei o primeiro livro que li, Voo Noturno, vôo ainda com acento circunflexo, de Antoine de Saint-Exupéry, já quase desmanchando as páginas. Achei o Miséria da Filosofia, de Karl Marx, que tantas histórias guardam, motivo de crônicas e palestras Brasil afora. A coleção Encanto Radical, que começou com o Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva, está toda espalhada: Morangos Mofados, do Caio Fernando Abreu, ao lado de Um Café para Sócrates, de Marc Sautet. O que Dentes ao Sol, de Ignácio de Loyola Brandão está fazendo agarradinho ao lado dos poemas de T.S. Eliot? Já pensei em pagar uma bibliotecária pra por ordem no galinheiro. Só pensei. De vez em quando fecho os olhos e passo a mão num livro aleatório, o primeiro que me vem à vista: Ontem à noite foi Soltando os Cachorros, de Adélia Prado. Comecei a ler: Quarenta anos é demais pra uma mulher. Prefiro quarenta e dois. O Papa tá passando pito nos jesuítas; plantei um pé de samambaia chorona que não vai pra frente de jeito nenhum. Galinho garnizé é galinho à toa, atrevimento empenado. E fui lendo, e fui lendo e pensei com os meus botões: pra quê biblioteca organizada?

VAMOS FUGIR!

Hoje eu vou fugir de casa, vou levar a mala cheia de ilusão. Vou deixar alguma coisa velha esparramada toda pelo chão.Vou correr num automóvel enorme e forte, a sorte e a morte a esperar. Vultos altos e baixos que me assustavam só em olhar. Pra onde eu vou, venha também. Eu vou pra Maracangalha, eu vou. Eu vou de liforme branco, eu vou de chapéu de palha, eu vou convidar Anália e se a Anália não quiser ir, eu vou só! Faróis altos e baixos que me fotografama me procurar. Dois olhos de mercúrio iluminam meus passos a me espionar. O sinal está vermelho e os carros vão passando e eu ando, ando, ando.bMinha roupa atravessa e me leva pela mão do chão, do chão, do chão. Vamos fugir deste lugar, baby. Estou cansado de esperar que você me carregue. Vamos fugir pra onde haja um tobogã e que a gente escorregue. Todo dia de manhã, flores que a gente regue, uma banda de maçã, outra banda de reggae. Vamos pegar o primeiro avião com destino a felicidade. Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui. Eu não tenho nada, quero ver Irene rir, quero ver Irene dar sua risada.

[Letras citadas: Fuga Número 2 dos Mutantes, Maracangalha, Vamos Fugir, Pense em Mim, Irene. Autores: Mutantes, Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Leandro, Leonardo e Caetano Veloso]