ONDE FICA YAOUNDÉ?

Toda manhã, depois de folhear os jornais nacionais, eu me pergunto: que notícias me dão da África? Quase nenhuma, nenhuma. Vejo fotografias de pessoas circulando usando máscaras em Londres, em Amsterdam, em Nova York, em Roma, mas nunca vejo ninguém caminhando pelas ruas de Kwanza, de Guitega, Yaoundé, Bamako ou Nouakchott. A pandemia se espalhou, fomos informados do número de mortos na China, no Japão, na Tailândia, no Laos, na Austrália, entre os índios, os quilombolas, os esquimós, os aborígenes. Mas quase nenhuma notícia dos africanos. O que chega aqui são apenas hard news, de tempos em tempos. Um general que tomou uma rádio aqui e deu um golpe ali, uma guerra lá e outra acolá. Ouvimos Chico César cantando Mamma África e Chico Buarque cantando a morena de Angola que leva o chocalho na canela, sem nunca saber se é ela que mexe o chocalho ou o chocalho que mexe com ela, aquela camarada do MPLA. Acordei querendo saber como vai o povo de Freetown, de Lomé, de Kampala, de Lusaka, de Harare. Cartas para a redação, please. 

BEAUCOUPS OF BLUES

Não me lembro se chorei, acho que não, era feio homem chorar. Mas o fim dos Beatles me derrubou. Eu não queria acreditar que o sonho havia acabado. Mas logo vieram os primeiros discos solos, que me colocaram de pé novamente. John Lennon cantando Imagine naquele longplay em que ele parece não ser o único sonhador em meio à nuvens. Veio aquele disco do Paul, o das cerejas em conserva espalhadas em cima da mesa, que abria com The Lovely Linda. E o álbum triplo de George Harrison dentro daquela misteriosa caixa? Eram os Beatles separados, mas Beatles forever. E o quarto a lançar o seu disco solo foi Ringo, o patinho feio. Olhar tristonho, vago, cigarro na mão, Ringo parecia um pouco desolado na capa de Beaucoups of Blues. Foi um susto quando comecei a ouvir Ringo Starr, eu não tinha vinte anos de idade e praticamente nenhum conhecimento de blues. Jamais ouvira falar de Jimmy Witherspoon, Menphis Slim, Etta James, Lind Boy Fuller ou Champion Jack Dupree. Quem era aquele cara cantando Woman of the Night, Waiting, Nashville Jam e Silent Homecoming? Cinquenta nos depois, confesso que ouvi o disco apenas uma vez e dei  de presente para um amigo, da mesma forma que dezenas de pessoas se desfizeram do Araça Azul, do Caetano, em setenta e três. Eu queria rock and roll e Ringo veio com romance. Fiquei com essa história na cabeça o domingo inteiro, depois de ler a entrevista com o  Ringo Starr, 80 anos, feita pela querida Ana Maria Bahiana para a Ilustríssima. Ele lembrou a ela que sempre foi um apaixonado por blues. Como eu me arrependo de ter desfeito daquele vinil, mas guardo aqui o CD e agora voltei a ouvir no Spotify. No meu confinamento, que remédio bom é o tal do Beaucoup of Blues. 

ASAS DO DESEJO

Pardal existe por tudo quanto é canto do mundo, quase todos iguais. Só no Japão que não são iguais aos daqui, aos de Djibuti, aos de Cariri. Ganharam uma leve plumagem amarela, talvez resultado de um cruzamento com canarinho belga. Mas não cantam também, vivem nas ruas de Tóquio, de Kioto, como qualquer outro. Quando cheguei a Paris para enfrentar aqueles longos invernos, assim que vi um pardal na Rue Souflot, logo perguntei como era o nome dele por ali e alguém me explicou que era Piaf, como Edith que conhecia pouco, mas aos poucos fui me apaixonando. Ela pegou o nome do passarinho por viver cantando pelas ruas do Quartier Latin. Mas piaf não canta, guardei isso para sempre e nunca entendi direito. Talvez Edith quisesse apenas a liberdade deles e não o canto. Nunca vi um ninho de pardal, mas sei como vivem, o que comem, por onde andam. Sei distinguir o macho de uma fêmea. O macho tem manchas marrons escuras nas asas e uma espécie de babador preto no peito. São maiores que as fêmeas, que têm uma plumagem marrom clara e uniforme. Gosto dos pardais e sempre que posso dou migalhas de pão para eles, sua comida preferida. Há cento e onze dias não vejo um. Da janela, procuro e vejo apenas maritacas, sabiás que são muitos e beija-flor que se aproximam da varanda para beber água fresca que troco todo dia no bebedor colorido. Nesses tempos de coronavírus, ando tentando desconstruir a frase genial de Mario Quintana. Eles passarinho, eu passarei. 

CIDADE OCULTA

Fico aflito porque ainda imagino a cidade viva, cheia de pessoas sem máscara, quando me retiro. Quando desligo a televisão, coloco o Spotify em pause, enjôo da live, fecho o livro e apago a luz. Cinco minutos depois, cansado de guerra, já estou viajando. Quatro meses já se passaram, ainda não sonhei com uma viva alma usando máscara, alguém com a máscara no queixo, dependurada na orelha, embrulhadinha na mão. Ainda não sonhei com uma mão esfregando na outra, lambuzada de álcool gel. Não sonhei com a torneira aberta, água escorrendo e eu com a mão cheia de Protex, esperando ela esquentar. Não sonho com notícias, com número de mortos, plantões, infectologistas falando, com as ruas de São Luiz do Maranhão transbordando. Sonho com uma cidade em preto e branco, vazia, tipo the end, enquanto o leão da Metro está ruivando, anunciando o filme que está apenas começando. Vejo uma roupa vermelha comum dependurada, bandeira que me acompanha há muitos e muitos anos, desde os tempos do quarto andar da 79, Rue de la Roquete, quando abanava a toalha vermelha na janela enquanto os manifestantes passavam em coro dizendo: Nem Giscard, nem Mitterrand, uma só solução, a revolução!

FAZENDO AS CONTAS

Acordei meio Walter Franco perguntando o que é que tem nessa cabeça, irmão? Cabeça de vento, cabeça vazia, cabeça oca, cabeça doendo, cabeça raspada, cabeça de nego, aquela bombinha dos tempos de menino, do politicamente incorreto. O que tem nessa cabeça de cada um? Aquele que está confinado, aquele que bebe Devassa num certo bar Leblon, aquele que carrega uma casa do Rappi nas costas, aquele que vende bala no farol, aquele que aparece todo dia na tela da TV falando de infectologia, aquele a ama, protesta. E agora? As cabeças estão todas voltadas para dois mil e vinte dois, já que meio um ano passou desse jeito. Passam dentro da cabeça planos para o Natal, planos para pular sete ondas, como se não houvesse meio julho, agosto, setembro, outubro, novembro e trinta e um dias de dezembro. Já providenciou o calendário de imã do ano novo pra grudar na geladeira, deu por encerrado esse dois mil e vinte e um, cancelou o sete de setembro, o dia de finados, o show do Roberto, a retrospectiva do Globo Repórter. Estamos no dia cento e oitenta e vamos pular logo para o trezentos e sessenta e seis, já que este ano tivemos o vinte e nove de fevereiro que nem me lembro mais o que aconteceu, a não ser os parabéns que mandei pro Jaguar. Vou jogar a chave do ano velho no mar, trocar a fechadura. Quem sabe?

O CASTIGO

Eu me lembro bem as vezes que fiquei confinado, no máximo quinze, vinte minutos. Era dentro de um banheiro espaçoso, mas tedioso. Havia um vaso, um bidê, uma banheira, um box protegido por uma toalha de peixes coloridos nadando. Havia um cesto de vime onde minha mãe ia juntando a roupa suja, um armarinho espaçoso com um espelho carcomido por uma espécie de ferrugem nas bordas. Dentro do armarinho, ela guardava as caixinhas de dentifrício Kollynos, os sabonetes Vale Quanto Pesa, o estojo de primeiros socorros, uma caixinha de grampos, um pente Flamengo, o vidro de brilhantina do meu pai. No box, o Vale Quanto Pesa quase sempre no fim, uma pedra palmes, uma bucha vegetal e um vidro de xampu de ovo. A parede era de azulejo branco até a metade e a outra metade pintada de azul, tinta epóxi. Haviam toalhas comuns dependuradas, cada um tinha a sua. A minha era de cor laranja. Era ali que, de tempos em tempos, passava aqueles quinze, vinte minutos de castigo. Quando o clima esquentava entre os cinco filhos, minha mãe escolhia um, pegava pelo braço e colocava no banheiro. Eu ficava sentado o tempo todo na beirada da banheira, olhando para aquelas coisas, para o nada, esperando o tempo passar. Quando passava, minha mãe abria a porta, mostrava o caminho de saída e dizia apenas uma frase: Veja se aprende! Eu aprendi.

NO FUTURE

Aí, de repente, o mundo ficou esquisito pra caramba. Até as casas foram separadas umas das outras, distância mínima de cinco metros medida por uma trena dos vigilantes da saúde. Acabou o beijo, o falar no ouvido, o chupão no cangote e a canção Aquele Abraço virou uma coisa tão do passado quanto nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia. Os dermatologistas passaram a ser chamados de pessoas da linha de frente, convocados para curar as mãos secas de tanto álcool gel, de tanta água com sabão. Os pés também secaram e enrugaram de tanta água sanitária, de tanto lysoform, de pisar em tapetes antissépticos. Agora são apenas cabines individuais feitas de acrílico. Nos equipamentos das academias, nas mesas dos cafés, nas poltronas dos cinemas, nas cadeiras dos estádios de futebol, nas pistas de cooper nos parques, de dança nos inferninhos, nas raias das piscinas, até nas mesas de reuniões da repartição. No Recife, não se fala mais um cheiro pra você porque ninguém mais sente cheiro de ninguém. Ninguém se toca mais em ninguém, ninguém respira mais perto de ninguém, até o ridículo cumprimento com o cotovelo caiu de moda. Inventaram a máquina de lavar compras, os sapatos com solas descartáveis, capacetes leves e maleáveis e plástico resistente para abraço apertado. A última moda são as máscaras transparentes para sabermos se as pessoas estão rindo ou chorando.  

AQUELE ABRAÇO

Ontem à noite, depois de consultar o meu calendário particular, deitei pensando nele, no seu aniversário de setenta e dois anos neste seis de julho, dois anos mais velho que eu. Não, não há mais uma estrada de ferro que liga Minas ao mar para que eu possa embarcar no Vera Cruz, saltar no meio do caminho, ficar em Juiz de Fora para dar-lhe um abraço apertado. Adormeci com fragmentos de suas canções na cabeça, coisas do tipo eu não gosto do Alice Cooper, onde é que está o meu rock and roll? Dizem que sou louco, mais louco é quem me diz. Ora, você está pensando que eu sou Loki, bicho? Eu quero ver o sol nascer, antes do outro comercial. Meu caro amigo, me perdoe se hoje não vou lhe ver. Sei que vai ter bolo, velinhas acesas, sopro. Sei que vai ter solo de guitarra Fender, sei que vai ter corta-jaca se tiver alguém, presente. Como será que vai ficar, corta jaca na cidade não é mole não. Onde será que eu vou ficar se o vento levou tudo e o meu cavalo já empacou. Quatro, cinco, seis! Onde é que está o meu rock and roll? De novo. Hoje o dia corre o risco de passar assim, amontoando palavras do tipo eu não quero virar bolor. Em quarentena desde mil novecentos e oitenta e dois, cultivando seus lápis de cor, suas cordas, seus marrecos, você passou dos setenta. No início, era a verve. Astronauta libertado, andava meio desligado, tempo de aprender inglês, saber o que eu sei. Tempo de cantar ela é minha menina, eu sou o menino dela, tempo de cantar adeus Maria Fulô. Misturar Jorge Ben com o rei do baião. Mais tarde, os genocidas vão abrir os bares de São Paulo e eu nem morto vou lá tomar uma 1606, comemorar os seus setenta e dois anos de vida. Então eu mando um abraço pra ti, Arnaldo Dias Baptista. 

A SABIÁ

Caminho entre muros no jardim do meu prédio. Trinta minutos contados no cronômetro do iPhone. No segundo andar, tem um cachorrinho desses de latido fino que não pode me ver que põe a boca no trombone. Acho que se espanta com a máscara. Late com a cabecinha do lado de fora da grade, nervosinho, raivoso. Tem uma sabiá fazendo ninho na primeira curva que faço. Dá dó. Toda vez que passo ela voa assustada. Quando sumo da sua vista, ela volta pro ninho, mas quando aproximo novamente, ela voa. Já tentei mostrar a ela que não levo nenhum perigo a seu ninho, mas não adianta, ainda não se acostumou comigo. Bem que poderia ficar ali, quietinha. Outro dia tinham sete maços vazios de cigarros juntos no chão, todos da mesma marca, certamente do mesmo fumante, não sei de que andar. Já achei um jogo americano que deve ter caído da janela da cozinha e hoje achei um terço de madeira, bem bonito. Entreguei na portaria. O chão é de pedra e o jardim está muito florido. Dá gosto caminhar ali, apesar de tedioso. De vez em quando aparecem alguns companheiros de caminhada. Uma japonesa e um idoso que dá poucas voltas e senta-se no sol para fazer suas palavras cruzadas. Meu mundo lá embaixo é limitadíssimo. De vez em quando faço umas fotos. Do contraste do concreto com o céu azul, do cachorrinho latindo, do piso de pedras. Mas ainda não fotografei a sabia, nem quis. Tenho receio de que ela se assuste mais ainda e abandone o seu ninho. Já fotografei também o tronco de uma árvore estranha, descascado, com manchas brancas como se tivesse vitiligo. Não tenho mais nada para contar. A piscina está vazia, a brinquedoteca fechada, a academia trancada. O mundo parece  que parou, mas eu continuo dando voltas. Até quando não sei, talvez até a sabiá chocar os seus ovinhos. Vou voltar, sei que ainda vou voltar a viver.  

PAPÉIS

Não embolo mais papéis e jogo na lata de lixo como fazia no século passado. Aquela mania de fazer um monte de XXXXXXX em cima da palavra mal escrita foi embora com minha Lettera portátil que me acompanhava por esse mundo afora. Quase não escrevo mais em papel, ficou mais simples e é nessas horas que saúdo a tecnologia. Mas ainda imprimo cada página dos cadernos da família e ainda faço uma coisa que acho que poucas pessoas fazem nesse mundo de hoje: recorto com uma tesoura notícias importantes do jornal e colo. Uso cola, não goma arábica ou Tenaz, uso cola em bastão. O caderno fica impecável assim e não como meus álbuns de figurinhas que, preenchidos, viraram uma espécie de sanfona de oito baixos como a de Januário. Lápis de cor ainda uso e gosto. Não para colorir aqueles livrinhos que viraram moda contra o estresse. Esses, nunca abri. Gosto de fazer os meus próprios desenhos ruins e sem criatividade. Nunca consegui chegar aos pés de nenhuma criança que pega um papel qualquer, um lápis colorido qualquer e traça sempre um objeto não identificado, uma pessoa, um pássaro, um sapo, um boi, melhor que eu. Guardo em casa um caderno que tem todos os meus desenhos que fiz durante dez anos de reuniões de pauta do Fantástico. Aquele sim, eu gosto. Desenhei ratos, avestruzes, porcos, cangaceiros, forasteiros, homens duelando, porquinhos-da-índia e kiwis. Tudo com caneta Bic. Não sei porque guardei esses desenhos, alguns minúsculos, um dia recortei e colei nesse caderno. Ali está o show da vida. Guardei todos, mas não me lembro das pautas relativas a cada um deles. Nenhuma. O dia ainda não amanheceu por aqui, mas já ouço barulhos de motor lá fora. Daqui a pouco o dia vai clarear e eu vou olhar pela janela, pro céu cinza de inverno nessa São Paulo e me perguntar qual é o meu verdadeiro papel. 

 

PROJETOS

Eu era muito menino quando minha família se mudou pra Brasília, Brasilia não era nada, era apenas poeira vermelha e tratores amarelos fazendo terraplanagem e levantando mais poeira ainda. Assim que os monumentos começaram a ganhar as formas de Oscar Niemeyer é que surgiu uma vontade danada de ser arquiteto. Comecei a sonhar com uma cidade planejada, organizada, diferente daquela zona que estava virando minha Belo Horizonte no início dos anos 1960. A Avenida do Contorno que rodeava a BH planejada perdeu completamente o rumo e crescia como a raiz de uma árvore frondosa, pra todos os lados. Bairros surgiam da noite para o dia, junto com as vilas e favelas, numa mistura urbana e suburbana que minha cabeça não conseguia dar conta, colocar ordem. Então, do nada, surgiu Brasília, toda certinha.Terrenos enormes e planos para construir superquadras, muita grama, muita vegetação, os prédios virados um pra cá um pra lá, desconstruindo a invasão da intimidade. Eu tinha um caderno grande com folhas grossas e brancas, separadas por papel de seda. Ali desenhava largas avenidas, superquadras, coloria a grama de verde, plantava árvores, imaginava uma escola parque para cada quatro superquadras, um supermercado, uma igrejinha, o comércio. Abria túneis, passagens de pedestres, viadutos, tudo muito bem pensado. Essa ideia de ser arquiteto só saiu da minha cabeça quando voltamos pra Belo Horizonte e fomos morar na Rua da Bahia, no olho do furacão, centro do caos. Achei que ali tinha mais vida do que Brasília. Cada cidade tem sua vida. Cataguases, Ponte Nova, Formiga, Alfenas. Eu gosto de metrópoles, Tóquio, Mumbai, Nova York, Istambul e a São Paulo que adotei e que está lá fora.

[foto Tadao Ando]

A MAÇÃ

Não adianta, não vou morder a maçã. Não vai ser uma sucuri, uma jararaca, uma coral que vai me fazer morder. Fico em casa até segunda ordem. Ultrapassei os cem dias e ser for preciso, chego aos duzentos, aos trezentos. Sei que é triste, sonho com o lá fora, o simples, o caminhar pela Heitor Penteado, o vendedor de sombrinhas em dias de chuva na boca do metrô, o vendedor de brigadeiros oferecendo a cada um que passa, vítima do desemprego, da crise que se instalou. Sonho com a China, com a aflição de querer fazer uma foto bonita e o que consigo é um pacote amassado do McDonalds no lixo, escrito em chinês. Nada mais. Fico aqui pensando se as pitangas da Praça Cornélia estão maduras, se o cheiro bom de pãozinho quente que sai da Fabrique ainda se espalha pela Rua Faustolo, se a Quatro Cinco Um de julho já está nas bancas ou se o livro do Thunderbird nas prateleiras da Livraria da Vila. Pura tentação de uma cobra que me oferece uma maçã vermelha embrulhada num papel de seda azul, como no meu tempo de menino. Vou passar mais um dia dentro de casa, trabalhando para o Nocaute, pesquisando, escrevendo o meu novo livro, finalizando a crônica pra Carta Capital, colocando as louças na máquina, lendo a biografia do Van Gogh, esperando a Julia Duailibi na telinha com as primeiras notícias da manhã e a Aline Midlej, um pouco mais tarde. Encantado com o We Transfer que o Buhrer mandou, dezenas de Millôr, muitos que ainda não conhecia, da fase em que ainda era Emmanuel Vão Gôgo. Conversar com a minha irmã mais velha pelo zap, direto de Brasília, sempre com novidades, perplexidade e temores. O dia promete ser o de número 101 e as maçãs da Mônica que estão na fruteira, essas sim, posso comer. Com mel e canela, um minuto e pouco no microondas. 

OS BICHOS

Ouvi dizer que os gatos estão chateados, estressados com os donos dentro de casa vinte e quatro horas. Não gostam disso, consideram que a casa é deles e precisam de momentos de solidão e soneca. Além de uma boa investigação pelos cantos da casa, sem o olhar atento e desconfiado dos donos. Já os cachorros estão felizes da vida, abanando o rabo, o sorriso deles. Gostam de companhia e sempre fazem cara de muxoxo quando vão passar uma tarde a sós. Acabou isso. Estão adorando essa pandemia, esse mimo o dia todo. Os peixes não estão nem ai, nem sentiram a chegada do coronavírus e continuam na deles. Pombos de rua continuam nas ruas, sentiram apenas o impacto da falta de farelo de pão nas portas dos bares. Os ratos, na mesma situação. O lixo dos restaurantes, prato cheio da madrugada, mirraram. Os pardais, ah os pardais são os pardais. Não se apertam. Se pudesse fazer uma escolha, queria eu ser um gato como este que fotografei em Gonçalves, lá em Minas Gerais. 

[foto Alberto Villas]

DESORDEM MUNDIAL

Poucos são os que estão dentro de casa pra valer. Recolhidos nos seus cantos, aproveitando os primeiros raios de sol que batem na varanda do apartamento. Que organizaram sua vida em espaços de quatro cantos. Aqueles que espiam a vida lá fora pela janela e se assustam quando ligam a televisão e enxergam transbordando as ruas do comércio popular de São Luiz, de Natal, de Belém do Pará, de São Paulo, de Belo Horizonte. São assustadoras as imagens das praias cheias no Rio de Janeiro, pessoas com máscara no queixo, na mão ou em lugar nenhum. São poucas as pessoas que estão vivendo de leitura, de live, delivery e home office, que na França chamam de télé-travail. O mundo virou uma bagunça de abre e fecha, de 90% dos leitos de UTI fechados, de respiradores que não funcionam, de repórteres com máscara mostrando gente sem máscara, de comércio aberto à meia porta, de ministro sem diploma que declarou no currículo, com uma vontade danada de ver o Queiroz colocando a boca no trombone, Flávio preso, o presidente da República caindo. Mas estou falando da bagunça cotidiana, o pó acumulado pela preguiça da faxina, o livro pra ler em cima da mesa com o marcador na primeira página, o pão crescendo no forno, a página do calendário já virada pra julho, uma folha em branco para organizar uma lista de coisas pra fazer.

[Ilustração/Obra de Stefan Zsaits]

MEU LEMA

 


Acordei mais alegrinho, não sei se alguém me disse ou se sonhei que andam espalhando hai-kais de Lemininski pela cidade. Escritos com tinha vermelha em papel couché, estão colados com grude nos postes. Hoje é domingo, pé de cachimbo. Hoje é dia de feira. É domingo no Vietnã, segunda em Sidney, é domingo em Ipanema, saudade de Itapuã.

 

 

 

 

TERRA EM TRANSE

Não saio, mas não sei se é pra sair ou pra ficar. Não sei se os shoppings estão abertos ou fechados, se os livros estão expostos, se o milkshake de Ovomaltine ainda existe, se existem vagas nos leitos na UTI de Caruaru. Não sei se é um metro ou dois metros de distância, se o rodízio está valendo, se os bares estão abertos, onde estão sendo enterrados os mil mortos por dia. Não sei se estão tomando hidroxicloroquina ou não, se os respiradores que não funcionam voltaram pra China, quando é que vai ser o próximo Fla-Flu, se o inverno vai chegar, se o ministro da Saúde vai ser nomeado, o que vai acontecer com o da Educação que não tem fez doutorado em Rosario. Não sei o que estão fazendo um milhão e tanto de contaminados. Onde vivem, o que fazem, o que comem. Não sei a cor da fase de São Paulo, se amarela, vermelha ou laranja. Não sei se a máscara do Doria é Dior, Chanel, Kenzo ou Gucci. Não sei mais a quantas anda o meu colesterol, não sei se o Doutor Brandão está atendendo ou não. Não sei como vai minha aldeia, como vai São Miguel dos Milagres, se o mar ainda vai e volta, se o peixe ainda é fresco, se aquelas casas pobres ainda estão com os telhados cobertos de antenas de TV. Não sei quanto custa meia dúzia de caqui, um saquinho de limão, uma caixinha de kiwi. Não sei se o feirante continua fazendo piada com a morena que passa fazendo pirraça tirando o sossego da gente. Se a moça do caixa do SuperVille continua perguntando se é dinheiro ou cartão, se não tem uma nota menor. Só sei que o meu inglês está bom ou ótimo pra trabalhar na Organização Mundial de Saude. Look the evolution of the coronavirus in the world is very important.  

CURRÍCULO

Sou um ser do outro mundo. Bati muita máquina, sujei muito as mãos de papel carbono, passei muito branquindo em laudas e mais laudas. Foquei, revelei fotos, diagramei com régua e compasso. Mexi muito para conseguir misturar o Toddy e acendi o fogão com palito de fósforo. Na primeira vez que votei, escrevi abaixo a ditadura! na cédula de papel e joguei dentro da urna. Li muito Mandrake, Flash Gordon, Luluzinha e Bolinha. Me intrIgava aquele plaquinha menina não entra, eu que gostava tanto das meninas: Suzana, Vandinha, Dayse, Beth, Teresa. Escrevi muitas cartas em papel de seda, viajei de carona pra Bahia na carroceria de caminhões, fui atrás do trio elétrico de Dodô e Osmar, nunca aprendi a mergulhar direito, a dirigir um automóvel. Torci pelo Brasil em algumas Copas do mundo, contra em outras. Viajei em jipes sem cinto de segurança porque não havia cinto, comi goiaba sem lavar porque não havia agrotóxico, quando o mundo ainda não era tech, não era pop. Ouvi muito Quarteto em Cy, Quinteto Violado e MPB-4. Li Fernão Capelo Gaivota e Cem Anos de Solidão há cinquenta anos atrás. Colecionei Conhecer, Os Cientistas, Gênios da Pintura e a Bíblia Mais Bela do Mundo. Conheci Henfil no Jornal dos Sports, Glauber Rocha na FairPlay, Paulo Francis na Diners, Clarice na Senhor. Vi chegar o CD, o microondas, o velcro, o fax, as cores na TV. Plantei um chorão na Rua Rio Verde, tive quatro filhos, escrevi nove livros. Salário a combinar.  

RIO, MAS TAMBÉM POSSO CHORAR

Cansei de ouvir que precisamos retirar a máscara segurando apenas pelo elástico, cansei de ouvir que as lojas vão reabrir, mas com uma série de restrições, cansei de ouvir a porcentagem do número de leitos disponíveis de UTI. Cansei de ouvir a pergunta quando é que isso vai acabar? Cansei de ouvir lives e podcasts. Não deveria. Deveria estar prestando atenção em tudo, em cada palavra, em cada acorde do novo disco de Neil Young, guardado na gaveta desde mil novecentos e setenta e pouco. Deveria estar mais atento ao avanço da ciência, o estágio da vacina, a cloroquina que tomo pra artrite. Mas não. Não quero ouvir que as escolas vão reabrir em setembro, eu me lembro dos Happenings cantando I see you in September e meus olhos brilham como na juventude, quando perdi aquele primeiro amor que era puro e verdadeiro. Não posso mudar de assunto. Cansei de ouvir sobrenomes, nomes próprios e impróprios: Weintraub, Maia, Jair, Flavio, Fabricio, Frederick, Heleno, Onyx e Braga Netto. Não devia ser assim, devia ser assado. A revolução dos pretos, a voz de Mano Brown falando tá ligado dotô pro Drauzio, Maitê Lourenço na capa da Exame, os punhos cerrados na Rolling Stone, o grito parado no ar na capa da Society. Viver essa confusão urbana, suburbana e rural, não esperava por isso ao ver aproximar os setenta anos. Esperava uma festa com cajuzinho, olho de sogra, canudinho, bombom de uva verde, brigadeiro e um beijinho doce. Me ligo nas news. Semana que vem o Museu do Louve vai reabrir suas portas de vidro depois de quatro meses. E a Monalisa vai estar lá com aquele sorriso enigmático de sempre. Rindo de quê, preciso saber. 

O DIA DE AMANHÃ

Caminhando para cem dias confinado, fotografo detalhes da minha casa para que a história seja contada no futuro. Uma Frida Kalo estampada num prato de porcelana dependurado na parede, uma sardinha de pano vinda do Mercado da Ribeira exposta numa estante do escritório, uma motocicleta de lata de 1943, brinquedo francês comprado num mercado de pulgas, na revistaria. São detalhes importantes de nós dois. O baú de fotografias em preto e branco deixadas por meu pai, muitas delas com legendas no verso: Bebendo uma água de coco em uma barraca na aprazível praia de Fortaleza, cidade hospitaleira. Se Gilberto Gil ouvia Cely Campelo pra não cair, aqui coloco na vitrola um vinil novinho em folha vindo da Rússia, em que Caetano muito tropicalista canta que em volta da mesa, longe do quintal, a vida começa no ponto final. Eles têm certeza do bem e do mal, falam com franqueza do bem e do mal. No Spotify, tento traduzir os novos versos de Bob Dylan, rouco como Tom Waits, dizendo que ele não é um cachorro na coleira. Fotografo para a eternidade o Pato Donald dirigindo uma baratinha, talvez a coisa mais antiga que tenho aqui no meu lar. O museu de mim mesmo não me deixa cair. Tenho perdido live, uma atrás da outra. De vez em quando capturo uma aqui, outra ali. João Bosco cantando Agnus Sei, Tom Zé cantando menina, amanhã de manhã quando eu acordar quero lhe dizer que o mundo vai desabar sobre nós. O meu dia precisaria de pelo menos 32 horas, fiz as contas, pra dar conta do recado. Tem dias que o novo livro fica parado e as ideias na cabeça se atrapalham e me incomodam. Será que as páginas que prometi pra Iara vão ficar pro São João? Não aguento mais ouvir na televisão a frase foram liberados para reabrir. Viro o disco. Toda essa gente se engana ou então finge que não vê que eu nasci pra ser o superbacana. Era uma época de Superist, um comprido com três camadas, uma de cada cor, infalível contra a gripe. São coisas que guardo de criança, ficaram na minha cabeça pra nunca mais sair. O drops Supra-Sumo com as balinhas de laranja e limão embaladas em papel alumínio, o suco Yuki, o primeiro em lata, as figurinhas do chicletes Ping-Pong, os soldadinhos que vinham dentro do vidro de Toddy. E a emoção de tirar com uma faca a cortiça da tampinha de Coca-Cola e ver se a tampinha estava premiada? Hoje o dia está apenas começando.        

AGUENTA CORAÇÃO

Não sei se o meu é bobo ou vagabundo. Lembro-me dele desde menino, quando desenhava em papel de seda a aorta direita e a aorta esquerda, Uma vermelha, outra azul. Eu era craque em desenhar coração nas aulas de ciências naturais e ainda sonhava em ser médico, desses doutores que abrem o peito dos outros e arranca o coração e troca por outro. Queria ser o Doutor Christiaan Barnard. Veio a tropicália e eu conheci os versos de Vicente Celestino: Mas diga tua ordem espero/Por ti não importa matar ou morrer/E ela disse ao campônio a brincar/Se é verdade tua louca paixão/Partes já e pra mim vá buscar/De tua mãe inteiro o coração. Mudei de rumo, achei que estava mais pra poeta do que pra médico. E segui observando as letras das canções: Eu lavo e passo/Sirvo à mesa e faxino/Aprendo e te ensino/Posso até dirigir/Comprar um táxi/Só pra lhe servir. Procuro no livro dos sonhos o que significa sonhar com um coração vermelho, sangrando, bobo, bola, balão, coração São João. Que não vai ter, eu sei, como não vai ter Olimpíada, Flip, a festa do couscous marroquino no meu aniversário, quem sabe a festa do Círio de Nazaré, a festa do boi. A minha dúvida nas primeiras horas da manhã de uma semana que começa é saber se o meu coração é garantido ou caprichoso.