CORES E NOMES

Nesses tempos sombrios, agora cheios de tons de cinza, quisera ser pintor. Ter uma palheta profissional, tubos de tinta de todas as cores, vidrinhos de ecoline, bastões de pastel, guache, uma caixa de lápis de cor daquelas de 198 cores, oito tons de amarelo, nove tons de verde, cinco tons de creme. Quisera eu estar enfurnado num ateliê esboçando corvos nos campos de girassóis, catedrais, anjos voadores, mulher de olhos fora do lugar, cabras e vacas. Passar o dia respirando aquele cheiro, criando combinações de cores como Mark Rothko, imaginando mulheres esguias como Paul Gaughin, pêssegos na fruteira como Paul Cèzane, queria ter a simplicidade de um Joan Mirò ou a fúria de um Jackson Pollock. Quando menino sabia desenhar rã, bambu, galo e rato. Fiquei nisso. Tentei, mas morri num quadro medonho que fiz e que chamei de Monkey’s Instalation. Ou, quem sabe, ser cantor, quem dera ser tenor, quem sabe ter a voz igual aos rouxinóis. 

[ilustração/Obra de Joan Mirò]

DEZESSETE

Por volta de mil novecentos e sessenta e seis, mil novecentos e sessenta e sete, quando ainda sonhava em ser jornalista, lembro-me bem de ter lido na revista Realidade uma reportagem sobre o fantástico mundo da criança. A revista colheu pequenos depoimentos da meninada e um deles deu o título para a matéria: “O mundo é aqui lá fora onde todas as coisas acontecem”. Lembrei disso hoje porque o meu mundo lá fora, há 19 dias, é visto pela janela, como se fosse uma tela de televisão passando um programa meio sem graça. O que me alegra é ver as árvores ainda estão bem verdes e os passarinhos que pulam nos galhos. Não ouço ninguém falando, conversando outro assunto, dando um abraço ou um simples aperto de mão. Me irrito com os ônibus que ainda circulam, não sei bem o motivo. Quem sabe são as enfermeiras e eu aqui achando que é gente que simplesmente desafia a quarentena para agradar o idiota que está no poder. Estou cansado de ver televisão de verdade, vejo sem parar por dever da profissão. Acabo trabalhando o dia inteiro, meio sem perceber. Nos minutos de folga que agora decidi ter por obrigação, vou pra rede que fica na varanda, o único lugar ao ar livre da casa, e mergulho na leitura de um livro fascinante: “A ridícula ideia de nunca mais te ver”, da espanhola Rosa Montero”, o último que comprei na Travessa, num dos últimos dias que ainda estava aberta. Fico maravilhado com a vida de Marie Curie, vítima do rádio que ela mesmo descobriu e a matou, depois de receber o Nobel junto com o marido, Pierre, morto esmagado pela roda de uma carroça. Quando acabar, vou reler os poemas de Pier Paolo Pasolini, minha paixão, e depois vou voltar à escravidão, de Laurentino Gomes. Hoje cedo, o carteiro deixou em cima do capacho a Superinteressante de abril, dois exemplares da Carta Capital que estavam acumulados na portaria do meu prédio e também a Piauí. Deixo tudo pro final de semana, quando acordo um pouquinho mais tarde e vejo que está passando o Globo Rural. Mas hoje ainda é quarta.