NO MEIO DO CAMINHO DO LIVRO TEM UMA PEDRA

Plantar uma árvore, já plantei. Plantei mais de uma, três. A primeira foi ainda jovem, um flamboyant na Rua Rio Verde que, com o tempo, uma semente virou uma árvore de verdade. Morreu vítima do progresso.

A segunda plantei num vaso apertado na varanda do apartamento que alugávamos na Avenida Higienópolis. Uma nespereira, que foi crescendo, atingiu mais de dois metros de altura, atingiu o teto e chegou a dar alguns cachos de nêsperas nanicas, nada vistosas, que ainda verde murcharam. Até hoje está lá, vejo quando passo, de tempos em tempos.

A terceira árvore plantei recentemente. Um abacateiro, também na varanda do apartamento onde moramos na Lapa. O caroço brotou dentro de um vaso preto vietnamita e, a cada dia, ele crescia alguns centímetros. Quando atingiu metro e meio, foi transplantado para a Praça Senador Leite, no Alto da Lapa.

Filhos, tive quatro. Julião e Sara do primeiro casamento, Maria Clara e Marilia do segundo. Adultos, acompanham o dia a dia da minha saga de ter filhos, plantar árvores e escrever livros.

Livros, escrevi nove, um pela Contexto, dois pela e-galáxia e seis pela Editora Globo. O décimo é que está sendo o X do problema. Os nove livros publicados foram escritos num fôlego só, apesar da dificuldade de pesquisa, de revirar baús, reler mais de duzentos cadernos de anotações. Mas acabaram saindo com uma certa facilidade.

O que acontece com o décimo livro chamado O ano em que você nasceu, não sei. São cinquenta capítulos, de 1.950 ao ano 2.000. Depois de fazer uma longa e minuciosa pesquisa, sento e escrevo uma crônica sobre os 365 dias de cada ano.

Quem nasceu, quem morreu, quem era o presidente da República, qual era a moeda que usávamos, como era a moda, que filmes estavam em cartaz, que automóveis circulavam nas ruas, que revistas estavam dependuradas nas bancas, quais os livros mais vendidos, as peças de teatro em cartaz, as músicas que tocavam nas rádios, quem ganhou o Nobel da Paz, as manchetes dos jornais e muito mais.

O livro andava bem até que o Jornal Nacional anunciou que a Organização Mundial de Saúde havia decretado pandemia ao vírus que começou silencioso lá em Wuhan e foi se espalhando pelo mundo.

Quando chegou aqui, bateu na minha porta, não atendi, me recolhi, fechando janelas e basculantes. Encolhido, pensei com os meus botões: sem ter de sair cedo para a firma, sem passar o dia fora, agora esse livro sai rapidinho. Foi aí que ele estancou. Não me pergunte o porquê. Não via a hora de chegar em 1.968, o ano que não terminou, mas empaquei em 1.958.

Escrevo pouco enquanto as horas passam por cima da minha cabeça.

Roberto Drummond, o autor de A Morte de DJ em Paris, passou dez anos escrevendo Sangue de Coca-Cola. Na verdade, durante os quatro, cinco, seis primeiros anos, ele tinha apenas o título, que é muito bom, mas nenhuma linha escrita. Era uma ideia na cabeça e uma caneta na mão, num tempo em que escrevíamos livros à mão.

Tenho dois amigos que estão, há anos, escrevendo duas biografias, uma sobre o ex-presidente Lula, outra sobre o Drummond, não o Roberto, o Carlos. Nem pergunto mais a eles como andam as obras, quando saem. Vai que perguntam sobre O ano em que você nasceu e eu vou ficar com uma cara de tacho, como diria minha mãe.

Depois deste, já tenho um outro na cabeça, a biografia do Edson Luís de Lima Souto, o garoto de 16 anos morto na porta do restaurante Calabouço, no Rio, assassinado pela polícia da ditadura militar.

Na verdade, já tenho também um terceiro rascunhado – Iara – um livro infantil que será ilustrado por uma outra Iara que deve estar lá esperando o texto por zap. Vou falar baixinho, vai que ela escuta.

Bem, deixa eu voltar para O ano em que você nasceu… Não tenho tempo a perder.

 

QUANDO OS AMIGOS COMEÇAM A MORRER

A primeira pessoa que vi morta foi Osvaldo. Ele foi assassinado misteriosamente num pequeno hotel no centro de Belo Horizonte. Misteriosamente porque não levaram nada dele. Alguns cruzeiros na carteira, um lenço de pano xadrez e um relógio Mido continuavam nos bolsos e no pulso quando encontraram seu corpo caído no corredor.

Osvaldo morto nunca saiu da minha cabeça. Na noite antes do crime, ele me prometeu levar, na manhã seguinte, um casal de pombos japoneses que compraria no Mercado Central. Contei a ele que havia visto aquele casal de pombos brancos numa banca do mercado, mas não tinha dinheiro para comprar. Foi então que ele me prometeu e eu acordei esperando os pombos que nunca chegaram.

Não gosto da morte, como disse um dia Veríssimo: sou contra!

Morreu meu avô, minha avó, morreram meus pais, um sobrinho, uma sobrinha, meu sogro, um cunhado, uma cunhada, as pessoas foram morrendo espaçadamente e a cada morte, uma dor.

Morreram todas as minhas tias, todos os meus tios, alguns primos mais velhos, vizinhos, parentes de longe, alguns nem conhecia.

Aí começaram a morrer os amigos. O primeiro foi o José Carlos Assunção Cecílio, o JCA, como chamávamos. Não tive coragem de ver o seu corpo, atingido por uma bala perdida.

Não vou enumerar todos aqui porque a altura dos acontecimentos, já são tantos que eu até me embaraço. Ontem foi a Déa.

Déa Januzzi, conheço desde 1971, quando coloquei os pés na Faculdade de Filosofia. Não existe turma como aquela de 74 da UFMG. Apesar de ter fugido do país e não ter me formado com eles, sempre fui tratado como um paxá por todos. Sempre que pude participei das festas que fazem todos os dezembros, desde 1974.

Déa fazia parte dessa turma e morreu sem que eu imaginasse Déa morta um dia, tamanho era seu vigor, sua alegria, seu entusiasmo pela vida. Dona da coluna Coração de Mãe no jornal Estado de Minas, o dela não tinha tamanho.

Morria de inveja do nome que deu a seu blog – Novos Velhos – causa que também defendeu de peito aberto. Nos últimos tempos, conversávamos por telefone, combinávamos matérias e a última que fez para mim foi uma reportagem sobre desejos que não envelhecem.

O seu texto era refinado: Não é mais fast-food. Nem self service. O sexo depois dos 60 anos exige requinte, mesa posta e, se preciso, velas para iluminar o crepúsculo que tinge o céu de vermelho avisa que a noite está chegando, escreveu ela na abertura.

Apesar dos nossos papos serem esparsos e quase sempre via iPhone, vou sentir saudade. Nós fazíamos parte dos novos velhos e agora estou aqui triste, quieto no meu canto, mudo, olhando para esse telefone, também mudo.

O QUE SEI SOBRE O VELHO DO ANDAR DE CIMA

Me disseram que o velho que mora no andar de cima passou quatro meses trancado dentro de casa, sequer chegou na janela pra ver o jardim do prédio, com medo do vento que vinha do hospital que fica bem em frente do apartamento dele.

Me disseram também que não podemos mais chamar uma pessoa de velho, agora é idoso, velho é pejorativo e feio.

O que fazer então com o clássico O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway? O que fazer com a canção gravada no vinil de Caetano Veloso, O Homem Velho?

Quanto ao véio da Havan, dane-se.

Me disseram que somente em meados de julho o velho que mora no andar de cima chegou na janela do quarto dele e se espantou como o chorão havia crescido e estava tão verde.

Durante quatro meses, o velho não pediu Ifood, mas pedia sim supermercado e farmácia pelo telefone. O porteiro já sabia que era para o velho, nem ligava pelo interfone avisando que a encomenda havia chegado. Subia com ela e colocava tudo na porta do apartamento 31 e tocava a campainha.

Uma meia hora depois, álcool e Lysoform nas mãos, ele abria bem devagarinho a porta e borrifava os pacotes. Deixava ali uma hora até colocar tudo pra dentro, usando máscara e luvas.

Lavava as frutas e legumes, passava um pano com álcool em cada saquinho de mantimento, em cada lata, em cada vidro. Ainda esperava mais uma hora para levar tudo para a despensa e guardar bem organizadinho.

O velho do andar de cima passou quatro meses fazendo palavras cruzadas, vendo o noticiário na TV, cochilando depois do almoço, colocando fotografias antigas em ordem e lavando máscaras, luvas, pijamas e cuecas.

Tudo limpinho, ele armava a tábua de passar roupa na área de serviço e passava peça por peça com o ferro bem quente para espantar de vez o vírus.

O velho do andar de cima comeu muito ovo frito, ovo cozido e ovo mexido durante a pandemia. De noite, só uma salada, uma tapioca ou um mingau de aveia Quaker. Ele nunca comprou outra marca.

Me disseram que o velho do andar de cima só colocou os pés fora de casa quando o número de mortos por dia chegou a 346. Ele anotava todos os dias num pedaço de papel quantas pessoas tinham morrido e colocava debaixo de um ímã, na porta da geladeira. Chegou a contar até 12.455, depois desistiu.

A primeira vez que saiu foi para dar uma volta no quarteirão, mudando sempre de calçada quando via alguém se aproximando. Isso, seis e pouco da manhã, quando ele tinha certeza que não iria cruzar com praticamente nenhuma alma viva.

Descia os três lances de escada, empurrava as portas que tinha de ultrapassar com o cotovelo, pedia ao porteiro para colocar o polegar na engenhoca para o portão abrir, fazendo a mesma coisa quando voltava pra casa, suado, cansado.

Me contaram que o velho do andar de cima guarda revistas do tempo da guerra e que ele voltou a ler, com a ajuda de uma lupa, aquelas notícias ruins e apavorantes de 1945.|

Ontem fez uma semana que eu não vejo o velho do andar de cima. Resolvi ligar para o porteiro e perguntar por ele. Me disse que viajou para Minas Gerais, foi pra o interior de carro com o genro. Resolveu viver ao lado da filha, do genro e dos três netos.

Como Maiakovski, quer viver o que lhe resta ali em Urucânia.

 

 

ETERNAS ONDAS DE UM MAR DE MINEIRO

Sem mar na minha terra, sentia muita falta dele. No fundo, queria saber o que havia, se mergulhasse vinte mil léguas submarinas, os corais, os peixes coloridos, os pequenos monstros que não nadavam, andavam. Aquelas lagostas enormes, camarões pitu, arraias.

Ouvia as canções de Caymmi em discos de 78 rotações que o meu pai colocava na vitrola, enquanto bebia uma Brahma Chopp e preparava a macarronada do domingo. Imaginava que era doce morrer no mar, e o mar quando quebrava na praia, era bonito, sim era bonito. 

Uma vez por ano víamos o mar, mar de Copacabana, nas férias de verão. O meu pai nem bem tinha chegado na Cidade Maravilhosa e já ia contando aquela piada de mineiro, a cada janeiro: “Encher esse mundão de água não foi nada, o difícil foi sargá isso tudo”. 

Menino ainda, devorei O Velho e o Mar no quase escuro de uma lâmpada de 40 velas de um abajur em cima do criado mudo. 

Na era dos festivais, torcia por Elis cantando Edu na finalíssima: eh, tem jangada no mar, eh eh eh… hoje tem arrastão, todo mundo pescar, chega de sombra, João

Numa dessas férias, levei pra minha aldeia uma garrafinha de Grapette cheia de água do mar. Ela ficava em cima da minha escrivaninha, mas com o tempo foi ficando turva, muito esquisita. Fedia, cheirava mal. Joguei no lixo com vasilhame e tudo. 

O meu prazer era ver e sentir a água viva do mar de Copa. Daquele mar sem fim, que a gente não via o horizonte e que meu pai repetia: “Lá longe é a África!”

Amadureci ouvindo Tim Maia: Ah! se o mundo inteiro me pudesse ouvir. Tenho muito pra contar, dizer que aprendi. E na vida a gente tem que entender que um nasce prá sofrer, enquanto o outro ri. Mas quem sofre sempre tem que procurar, pelo menos vir achar, razão para viver. Ver na vida algum motivo pra sonhar, ter um sonho todo azul, azul da cor do mar.

Um dia, no exílio, caiu nas minhas mãos o vinil Aprender a nadar, de Jards Macalé: Só mesmo vendo como é que dói trabalhar em Madureira, viajar na Cantareira e morar em Niterói. Eh Cantareira! Vou aprender a nadar, não quero me afogar.

Outro dia, atravessei o mar a remo e a vela, fiz guerra e em terra, montei a cavalo, e em pelo de sela, cruzei as florestas, montanhas e serras, só pra te ver, Gabriela!

Quanto tempo temos antes de voltarem aquelas ondas que vieram como gotas de silêncio tão furioso, derrubando homens entre outros animais,
devastando a sede desses matagais. 

Numa noite de verão, Madalena foi pro mar e eu fiquei a ver navios. Quem com ela se encontrar, diga lá no alto mar, que é preciso voltar já pra cuidar dos nossos filhos.

 

Músicas citadas: É doce morrer no mar (Dorival Caymmi), Arrastão (Edu e Vinícius), Azul da cor do mar (Tim Maia), Mambo da Cantareira (Jards Macalé), Gabriela (Chico Maranhão), Eternas ondas (Zé Ramalho) e Madalena (Chico Buarque)

 

QUERO IR PARA PARIS, PARIS NÃO HÁ MAIS

Fico aqui pensando com os meus botões se um dia vou voltar a pegar um avião com destino à felicidade. Chamo de felicidade, Paris, a cidade que conheço na palma da mão, onde morei por quase uma década em tempos sombrios por aqui.

A Paris que eu sonho voltar um dia e não sei se vou realizar, também está triste, com poucas pessoas circulando de máscaras pelas ruas, os cafés fechados, inclusive o Café de Flore onde, uma vez por ano, ia tomar um chocolate quente e comer um croissant au beurre

Eu era apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem amigos importantes e vindo de Belo Horizonte. Os minutos que passava ali sentado uma vez por ano me bastavam. Ficava imaginando Jean-Paul Sartre chegando com Simone de Beauvoir. O que eu teria para dizer a eles com o meu francês ruim?

Foi em Paris que aprendi a cozinhar, a descascar batatas, fatiar cebolas, temperar pepinos, amassar alho, selar berinjelas. Foi em Paris que aprendi a comer pamplemouse com colherzinha, a gostar de carne de carneiro temperada com harrissa, a molhar as tiras de pepino no molho de iogurte grego.

Paris para mim é e não é um passeio à beira do Sena nessa época de outono, uma lambida no sorvete de manga do Bertillon a caminho da Notre Dame, hoje apenas cinzas. Paris para mim é escrever poemas ao lado de um copo de Perrier com uma rodela de limão siciliano num bar qualquer do Marais.

Mas é também o boeuf bourguignon mal feito do restaurante Mabillon, onde nós universitários comíamos de segunda a sexta. É também a recordação de uma gelatina endurecendo no peitoril da janela por falta de uma geladeira, um tatame no chão por falta de uma cama da Habitat e de roupas comuns dependuradas no vão da janela por falta de um armário. 

Se um dia essa pandemia se for, vou ouvir uma voz dizendo que dentro de poucos minutos pousaremos no Aeroporto Internacional Charles De Gaulle. Vou apertar os cintos, calçar o tênis, colocar a cadeira na posição vertical e ficar olhando na telinha o avião sobrevoando e circulando a cidade amada.

O avião vai pousar, vou descer, percorrer correndo enormes corredores até chegar na porta principal e pegar o ônibus 131 até Denfert Rocherreau

Quero parar numa banca pra ver a capa do último número do Charlie Hebdo, sacudir e tomar uma Orangina, comer um pain au chocolate, passar a tarde observando os livros dos buquinistas expostos na murada do Sena. Descer as escadas rolantes dos Halles, entrar na Fnac para observar mil e um livros novos e, ao lado, comprar um incenso une après-midi sous um figuier, porque Paris me viciou em figos, em livros, em Orangina, em pamplemouse, em poesia e em incenso, desde aqueles anos hippies. 

 

QUANDO UM CACHORRO VEM TRAZER UM RESPIRO NA PANDEMIA

Venho dessas famílias que a gente diz: na minha casa sempre teve cachorro. Sim, sempre teve cachorro. Foram quatro: Jolie, Tupi, Pink e Fly. Cachorros soltos dentro de casa e no terreiro, daqueles que se engasgavam comendo osso de frango no domingo depois do almoço.

Gostamos de cachorro desde o Rin-Tin-Tin, a Lassie e o Lobo.

Ainda não havia petshop, ração, brinquedinho, caminha, xampu, nada disso. Bebiam água numa lata de goiabada da Cica e iam uma vez por ano ao posto da Prefeitura pra vacinar contra a raiva. E só.

Depois de muito lutar para não ter um cachorro, na quarentena adotamos o Canela. Vira-lata, foi abandonado num Posto Ipiranga no meio da estrada. Tive logo a ideia de dar o nome a ele de Guedes. Ouvi um sonoro não de todos aqui. Seria muita humilhação para ele.

Chegou Bob e ganhou um novo nome, Millôr, que durou umas duas horas. Ficamos lembrando de nomes de cachorros e quando ele ouviu Canela, abanou o rabo e veio todo serelepe. Virou Canela imediatamente e sempre atendeu por esse nome. Acreditamos que ele era Canela desde pequenininho.

O Canela é o vira-lata mais nobre do pedaço. Senta esguio esperando eu colocar o tênis, pegar o saquinho plástico, a máscara, a coleira pra passear.

Chegou aqui sem saber o que é elevador. A porta abria e ele ficava olhando, não entrava. Agora só falta apertar o botão S1 quando saímos pra descer.

Aprendeu a não fazer xixi na garagem, sabe esperar a hora do passeio e – acredite – pede colo depois de nos acompanhar no café da manhã. Fica observando a mesa, sem sequer enfiar o focinho onde não foi chamado. A gente aqui em casa vive dizendo que se fosse fêmea chamaria Gilda, porque não existe cachorro como Canela.

Metódico, dá nove horas vai para o cômodo onde funciona o home office da Paulinha e fica esperando a hora do trabalho dela. Divide as atenções durante o dia. No final da tarde vem pro meu escritório e deita na caminha esperando a hora do petisco.

Paramos de dar ração e agora fizemos a comida dele. Descobrimos que o açougue do supermercado tem uma carne que leva o nome de retalho. É um mix de carne, pedacinhos que sobram daqui e dali na hora do corte. Do acém ao filé mignon, do patinho ao colchão duro. A comida é simples e fácil de fazer. Sem gordura, sem sal e ele ama. Abandonou a ração de vez, não suporta o cheiro. Será que criamos um monstro?

O Canela alegrou nossa vida nessa pandemia. Tem horas que ele parece o Brian da Family Guy. Dá impressão de que vai sentar na mesa conosco e discutir filosofia. Canela não morde, late só na rua e adora brincar com os outros cachorros. Se deu bem com a Shakira e a Cher, das nossas filhas. Acho que ele percebeu que estava escrevendo sobre ele nessa manhã de quinta-feira. Só acordou agora e veio abanando o rabo, feliz da vida.

 

TRÊS COISAS ANTES QUE EU ME ESQUEÇA

As paredes são frias, pintadas à óleo, uma combinação de creme com cinza. O barulho é baixo, mas intenso e o pisca-pisca de números e curvas, mais ainda. O cheiro é uma mistura de éter, álcool, clorofórmio, um odor que lembra o cómodo das farmácias de antigamente, onde tomávamos injeção de Benzetacil. Não tem graça nenhuma e o andar apressado do pessoal da linha de frente deixa sempre a impressão de que alguém está indo embora para nunca mais. Às vezes não, apenas é hora de um pequeno procedimento. Os olhos nos aparelhos são atentos, no relógio, no pulso. A vontade de respirar fundo é grande, fazer contraste com aquela dificuldade de aspirar e expirar das pessoas ali. Os pulmões fragilizados viram pra lá e pra cá e vão, aos poucos, transformando-se em farelo nas radiografias que só trazem tristeza. Ultrapassamos os cento e trinta e quatro mil mortos. Do lado de fora faz sol e a vida é mais colorida que aqueles cobertores verdes. Aqui fora, discutem a volta às aulas, a abertura das casas de espetáculo, o shopping a todo vapor, a galera na arquibancada, essas coisas.

Sinceramente, vontade de sair andando a esmo, sem destino, tipo Paris-Texas, tipo Werner Herzog quando escreveu Sur le Chemin des Glaces, sem lenço e sem documento. Sair reto, subir a Catão, ganhar uma estrada, atravessar sete mares, subir montanhas, chegar a Zona da Mata, comer algumas mangas Ubá até enfarar. Reencontrar paisagens, velhos amores e seguir adiante. Subir a América do Sul tipo Diários de Motocicleta, fazer uma pequena revolução. Derrubar o governo da Bolívia e, na Colômbia, soltar um rojão. Revisitar o museu Botero, comer frutas exóticas e seguir caminhando pela estrada de ferro que não vai dar em nada. Ali é o fim do mundo. Vontade de abrir a porta, descer as escadas, deixar as janelas abertas sem se importar se vai chover no sofá, se vai molhar os livros, se vai estufar o chão. Esquecer todos os compromissos, nem que seja por vinte e quatro horas. Não, vinte e quatro horas é pouco. Trinta e seis. Construir um barco, tipo Fitzcarraldo.

Eu tinha uma verdadeira paixão por mapas. Ficava imaginando tempos de outrora, quando navegantes aventureiros saiam singrando pelos mares à procura de novas terras. Gostava de mapas simples e de mapas antigos, aqueles rebuscados, em cor sépia, imitando pergaminho. O meu caderno de Geografia era um capricho só. Tinha um unicamente de mapas. Sou do tempo em que não havia Tocantins, nem Mato-Grosso do Sul. O Acre, Rondônia, Roraima e Amapá eram territórios e tudo isso estava nos meus mapas, cada estado, cada território de uma cor. Goiás era roxo, Minas Gerais era verde e eu já ia me esquecendo do estado da Guanabara, que existia também. Só depois, eu menino ainda, acrescentei dentro de Goiás aquele retângulo, o Distrito Federal. Gostava de imaginar lugares novos, países das maravilhas, terras do nunca. Fazia mapas de cidades, de estradas, copiando aqueles da Quatro Rodas. Até hoje gosto de mapas, espetar alfinetes com a cabeça colorida nos lugares por onde já andei. Me impressionava o Chile tão comprido, a Itália uma bota, o nariz de Minas Gerais, a Bélgica tão pequena. Me perdia naquela União Soviética imensa e despovoada, como a Amazônia. Ver um mapa mundi estendido no chão do meu quarto era a glória. Ainda é, porque meu sonho é conhecer o Zaire, a Zâmbia, o Butão, países que acabei de localizar e que muitos acham que são países que não estão no mapa.

AS SEIS CANÇÕES DO CÁRCERE DE UM NARCISO EM FÉRIAS

Caetano Veloso cita seis músicas no seu depoimento a Renato Terra e Ricardo Calil, sobre sua prisão em 1969, duas semanas depois do Ato Institucional número 5. No documentário Narciso em Férias, que foi aplaudido em Veneza no dia 7 de setembro, ele canta três canções e, com dor no coração e uma certa angústia, silencia sobre as outras três.

Canta Irene, a única que fez atrás das grades, quando apertou a saudade da irmã, com então 14 anos de idade. Na gravação original, que abre o disco de capa branca e que leva apenas sua assinatura, Caetano erra no início e deixa o erro no vinil: esqueci. Eu vi que você não estava com cara de quem ia cantar. Eu estava esquecido, quando me lembrei já foi em cima da hora. Ah, meu Deus… ah! Na letra, uma única vontade, a de ir embora daquele lugar: eu quero ir minha gente, eu não sou daqui, eu não tenho nada, quero ver Irene rir, quero ver Irene dar sua risada.

Canta Terra, a canção que fez, alguns anos depois, e que sua memória o remeteu ao quartel do Exército. Compôs a lembrança de Dedé que levou para ele ver a revista Manchete com as fotos da Terra vista do espaço. Na verdade, um hino ao Planeta Terra: quando eu estava preso na cela de uma cadeia, foi que vi pela primeira vez as tais fotografias, em que apareceres inteira, porém não estava nua e sim coberta de nuvens. É em Terra que ele reconstrói os versos de Paraíba, de Luiz Gonzaga, aquela Paraíba masculino mulher macho sim senhor! Mando um abraço pra ti pequenina como se eu fosse o saudoso poeta e fosses a Paraíba.

Canta Hey Jude, a canção que ouvia na prisão e que lhe dava a sensação de que dias melhores viriam: Ei, Jude, não fique mal, pegue uma canção triste e torne-a melhor. Lembre-se de deixá-la entrar em seu coração, então você pode começar a melhorar as coisas e sempre que você sentir dor. Ei, Jude, vá com calma, não carregue o mundo nos seus ombros

Caetano não tocou Súplica, sucesso no vozeirão de Orlando Silva, a canção que um velho comunista, companheiro de prisão pedia que ele cantasse: Aço frio de um punhal/Foi o seu adeus para mim/Não crendo na verdade, implorei, pedi/As súplicas morreram num eco em vão/Sofrendo nas paredes frias de um apartamento.

Não cantou também Onde o céu azul é mais azul, uma aquarela brasileira na voz de Francisco Alves, a canção que Caetano tem medo, medo de chorar ao ouvi-la: Eu já encontrei um dia alguém/Que me perguntou assim, iá, iá/O seu Brasil o que é que tem/O seu Brasil onde é que está?/Onde o céu azul é mais azul/E uma cruz de estrelas mostra o sul/Aí, se encontra o meu país/O meu Brasil grande, e tão feliz.

E Caetano não cantou Assum Preto, de Luiz Gonzaga, recuperada pela fatal Gal Costa, outra música que lhe causava uma tristeza profunda;

Tudo em vorta é só beleza/Sol de abril e a mata em frô/Mas Assum Preto, cego dos óio/Num vendo a luz, aí, canta de dor/Mas Assum Preto, cego dos óio/Num vendo a luz, aí, canta de dor/Tarvez por ignorança/Ou mardade das pió/Furaro os óio do Assum Preto/Pra ele assim, aí, cantá mió.

Sim, as histórias voltam junto com as canções.

 

 

 

OS DIÁRIOS ACUMULADOS NOS TEMPOS DE PANDEMIA

Eu sempre escrevi, desde aquele primeiro de janeiro de 1975, quando estava longe do meu país e achei que seria bom registrar o exílio. Escrevia à mão, depois passei pra máquina de escrever e agora escrevo aqui nesse computador. Hoje, por exemplo, quando saí cedo pra passear com o nosso cachorro, uma mulher caminhando ao meu lado disse que o Canela é uma graça. O nosso Canela é um vira-lata, mas é realmente uma graça. Ela contou que só passeia com o dela à noite, quando chega em casa depois do trabalho. Ele passa o dia no quintal que dá também pra varanda. Contou que ele adora enfiar o focinho na grade e ficar observando o movimento da rua. Mas agora mudou uma mulher para a casa do lado que está implicando com ele, ela não gosta de cachorro. Disse que ele devia ficar preso. “Ora, a casa é minha, moro lá há dez anos e não vou deixar ele preso. Se ela está incomodada, que se mude”. Antes de nos despedirmos, na esquina de Roma com Catão, ela concluiu: “mas eu não sou boba nem nada. Instalei uma câmera porque vai que ela resolve envenenar o Suck, não é mesmo?” Pronto, escrevi.

O que eu sentia pela Matemática era pavor, desde muito pequeno. Nascido para as Humanas, vivia noites sem dormir às vésperas de provas, vinham furúnculos e tinha febre. Era um rebelde que não se conformava em resolver equações que jurava serem inúteis para minha vida. Nunca aprendi a fazer uma raiz quadrada! Quando o boletim vinha nota vermelha em Matemática, o meu pai engenheiro não engolia. Eu argumentava: que dia na minha vida alguém vai me perguntar quanto é a raiz quadrada de 49? Não entendia também porque precisava saber quais eram os afluentes do Amazonas, a capital da Dinamarca e o que foram as Capitanias Hereditárias. Lembrei disso quando fiz um percurso de barco de Manaus até Parintins, passando pelos afluentes. Lembrei disso no dia em que pus os pés em Copenhagen, mas as Capitanias Hereditárias e a raiz quadrada de 49 estou tentando entender até hoje.

Todos em casa temos coração mole, a família inteira. Pai, mãe, filhos, netos, bisnetos. Não existe a palavra insensível por aqui. Não tem como ver alguém mexendo nos sacos pretos de lixo tarde da noite e ficar impassível, cara de paisagem. O coração mole parte em dois. Nas manchetes dos jornais, vejo a euforia com o crescimento do mercado imobiliário. Somos esquerdas demais pra não pensar nas vinte e cinco mil pessoas que moram nas ruas da maior e mais rica cidade da América do Sul. Não tem como ver famílias cujo teto é o viaduto Presidente João Goulart, a marquise da Marabá, o plástico tosco e rasgado daquela que um dia foi uma barraca de camping. O fogareiro na calçada esquentando água para um macarrão, uma flor de plástico em cima de um caixote de frutas selectas, um cão dormindo. Como um argonauta, meu coração não aguenta tanta tormenta. O Doutor Christian Barnard, um dia, trocou um pelo outro, mas era coração com aorta direita e aorta esquerda, aprendi no Marista. Outro dia, o meu irmão mais velho me chamou a atenção: já pensou que o coração da gente é uma máquina que está funcionando vinte e quatro horas por dia, há mais de setenta anos? Uma hora para, não tem jeito. Já cantaram o coração bobo, o coração vagabundo, o coração balão, o coração São João. E também o coração que, não sei porque, bate feliz quando te vê.

UM BALAIO DE FRUTAS DAS QUATRO ESTAÇÕES

Ainda pequeno, eu tinha medo de maçã. Na sala de catecismo tinha um pôster na parede mostrando Eva oferecendo uma maçã ao Adão. Enquanto aprendia o Pai Nosso, a Ave Maria e a Salve Rainha, ficava com os olhos fixos naquela gravura, os dois seminus no meio do mato e uma serpente enrolada nos galhos. Tinha medo da maçã e da serpente. Depois passou. Passei a gostar das maçãs argentinas, vermelhas e cheirosas, embrulhadas num papel de seda azul, uma a uma, aquelas que um dia Caetano encontrou poesia ali. Muitos anos depois, convivia com elas diariamente. Seis horas da manhã eu estava no Mercado Central de Belo Horizonte para comprar uma, duas caixas. Elas eram embaladas bem apertadinhas e me impressionava a cor branca da madeira que vinha dos Pampas e aquele cheiro maravilhoso que se espalhava dentro da Rural Willys a caminho da Savassi, onde eu tinha um carrinho de frutas que funcionava 24 horas, no coração da Praça Diogo de Vasconcelos. Era início dos anos 1970 e foi assim que juntei dinheiro para ir-me embora do Brasil, fugir daqueles hipócritas disfarçados rondando ao redor. Vendia, além das maçãs, peras, bananas, mexericas, mangas, abacaxis, morangos e, na época do Natal, pêssegos, ameixas e uvas Niágara encaixotadas. Hoje, tantos anos depois, continuo convivendo com as maçãs. Lavando uma a uma com água e sabão e depois secando com um pano de prato as mãos úmidas de uma canção.

Fui juntando coisas, juntando, juntando e acabei criando um museu de mim mesmo. Hoje vivo rodeado de memórias e olha que só guardei as boas, nada de ruim. Tenho um gato de porcelana bordado com motivos turcos pechinchado no Grande Bazar de Istambul, como tenho um coelhinho de plástico do América Mineiro, presente do Chico Regueira. Tenho três garrafas de cerveja – Marx, Trotsky e Rosa – que acredito eu já saíram de circulação. Tenho brinquedos antigos, um disco voador de 1960, uma placa metálica na parede onde se lê: Hippies Use Side Door. Tenho um pôster do Yuri Gagarin, um rádio de 1940, um Buda comprado na Feira da Ladra em Lisboa, um azulejo pintado pelo Peticov, um altar do Universo em Desencanto com a imagem do Tim Maia, tenho coisas que nem eu mesmo acredito que tenho. Quem mais teria um elefante enferrujado que veio lá da Fundação José Saramago? Quem teria uma caixa com sete cds da Yoko Ono? Quem teria um cachorrinho verde de porcelana comprado num antiquário em Havana? Não faz muito tempo, passei uma temporada num vilarejo no interior da Grécia, onde no meu inventário constava apenas um laptop. Acordava, olhava pela janela e via o mar azul, lá embaixo. Um pé de limão siciliano no quintal e um outro de abricós carregado, na casa do vizinho. Eu não tinha bibelôs, nenhuma recordação. Além do laptop, agora estou lembrando, tinha também o livro 1968, da Ariana Fallaci, e um livrinho chamado 101 motivos para ser de esquerda, ambos em italiano. Estava vazio em Vryses e me sentia provisório ali. Hoje morro de saudade e queria viver provisório assim para o resto da vida. Vazio, mas tão bonito quanto uma obra de Carlo Benvenutto, onde se vê apenas uma cadeira, uma mesa com uma toalha de algodão e três ovos. Nada mais.

Geralmente é no domingo que lavo as frutas que chegaram do supermercado. Isso desde as águas de março, quando o vírus chegou por aqui. Nos primeiros dias deixava tudo dentro de uma bacia por uns vinte minutos, com água e algumas gotas de Hidrosteril. Depois que vi na televisão que era preciso esfregar uma a uma com água e sabão, compramos uma barra de sabão de coco e começamos a esfregar cada laranja, cada papaia, cada limão siciliano, cada manga espada, cada carambola. Esfrego pensando nas goiabas com bicho que engolia, nas jabuticabas que colhia e ia estalando na boca, uma a uma, uma bacia. Pensando no jambo cheiroso do vizinho que roubávamos, nas ameixas amarelas que, quando cresci, viraram nêspera. Nas pitangas e nas amoras que deixavam roxa a calçada da Rua Grão Mogol. Vou juntando as frutas ao lado da pia, formando numa pirâmide que me lembra vagamente as fruteiras de Paul Cezanne que certamente não lavava as frutas naquele 1900. Elas vão formando um colorido bonito predominantemente amarelo com tons de vermelho e laranja e com toque de verde da manga espada. Tão bonitas que outro dia fotografei, legendei moro num país tropical e postei no Face. Os morangos e os kiwis lavo rapidamente. Porosos não podem ficar de molho, vi também na televisão. Todo domingo é assim. Gasto parte do meu tempo lavando frutas, sentindo o cheiro do sabão de coco, mas principalmente das carambolas, as mais cheirosas.

FRAGMENTOS DE UM CONFINAMENTO SEM FIM

Há seis meses estou aqui matutando como arrumar todos esses livros na biblioteca. Já pensei em tudo. Tirar um por um, espanar, catalogar. Já pensei em separar por assunto, por ordem alfabética do autor, ordem alfabética do título. Já pensei até em eliminar alguns, doar, encadernar outros, os estropiados indispensáveis. Há seis meses penso nisso. Só penso, nunca coloquei a mão na massa. Andei bisbilhotando prateleiras que não via há muito tempo. Achei a primeira edição de Fazenda Modelo, do Chico, lá dos anos 1970. Achei o primeiro livro que li, Voo Noturno – vôo ainda com acento circunflexo – de Antoine de Saint-Exupéry, já quase desmanchando as páginas. Achei o Miséria da Filosofia, de Karl Marx, que tantas histórias guardam, motivo de crônicas e palestras Brasil afora. A coleção Encanto Radical, que começou com o Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva, está toda espalhada: Morangos Mofados, do Caio Fernando Abreu, ao lado de Um Café para Sócrates, de Marc Sautet. O que Dentes ao Sol, de Ignácio de Loyola Brandão, está fazendo agarradinho ao lado dos poemas de T.S. Eliot? Já pensei em pagar uma bibliotecária pra por ordem no galinheiro. Só pensei. De vez em quando fecho os olhos e passo a mão num livro aleatório, o primeiro que me vem à vista: Ontem à noite foi Soltando os Cachorros, de Adélia Prado. Comecei a ler: Quarenta anos é demais pra uma mulher. Prefiro quarenta e dois. O Papa tá passando pito nos jesuítas; plantei um pé de samambaia chorona que não vai pra frente de jeito nenhum. Galinho garnizé é galinho à toa, atrevimento empenado. E fui lendo, e fui lendo e pensei com os meus botões: pra quê uma biblioteca organizada?

Ser jovem em 1968 foi uma das experiências mais fascinantes. Além de ser cabeludo, usar tamancos suecos, calça vermelha e casaco de general, tínhamos mil ideias na cabeça. Viver em comunidade, viver sem dinheiro, viver de amor. Viver como passarinho, andar meio desligado, não sentir os pés no chão. Líamos Erich von Daniken na certeza de que eram os deuses astronautas. Sonhávamos com Macondo ao mesmo tempo que com a guerrilha urbana, suburbana e rural. Um exemplar do Voz Operária nas mãos valia ouro, mais valia que qualquer outro jornal. Decifrávamos a guerrilha de Marighela em fascículos proibidos, guardados segredos dentro de uma caixa de papelão do extrato de tomate marca Peixe. Curtíamos o barato de ver Janis Joplin no palco e Jimi Hendrix incendiando uma guitarra. O som de Spanish Castle Magic ia e voltava enquanto o sonho era mesmo caminhar contra o vento, sem lenço, sem documento no sol de quase dezembro. Queríamos debulhar o trigo, recolher cada bago do trigo, plantar batatas e colher frutos. A gente não precisava de muito dinheiro, graças à Deus. Tínhamos na cabeça uma fantástica fábrica de ideias, objetivo dar uma facada certeira no capitalismo, olha o sangue, olha o sangue no chão! Mas não soubemos por ordem nisso tudo. Na parede do meu quarto, atrás da porta, escrevi em letras miúdas com uma caneta Pilot: O último capitalista que vamos dependurar será aquele que nos vendeu a corda. Entre parentes, rabisquei: Karl Marx.

Plantar uma árvore, já plantei. Um chorão que semeei no quintal da Rua Rio Verde e que virou uma frondosa árvore. Plantei também uma ameixeira na varanda do apartamento na Avenida Higienópolis e que está lá até hoje, vejo quando passo. E plantei um abacateiro na varanda do meu apartamento aqui na Lapa. Já está com mais de um metro de comprimento e minha mulher quer que eu tire ele de lá porque, com algumas folhas amarelas, ela acha que ele, no vaso, não cresce mais que isso. Tento resistir, argumentando que o abacateiro será sempre meu parceiro solitário nesse itinerário da leveza pelo ar. Ter um filho, já tive, quatro! Todos adultos, crescidos, os meninos estão todos sãos. Dois nasceram em Paris, dois em São Paulo. Um menino, três meninas, todos parecidos, prontos para enfrentar a vida.

Escrever um livro, já escrevi, nove! E estou escrevendo mais um. Minha obra ainda está incompleta. Trato do meu novo livro como tratava daquele chorão na Rio Verde: aguando todos os dias um pouquinho para não deixar a terra muito seca. Trato como tratava dos meus filhos, dando papinha, trocando fralda, colocando panos frios na testa nas madrugadas de febre, vendo o VHS de Óia a Onça cinquenta vezes e ensinando o que foram as Capitanias Hereditárias.

Acabo de completar setenta anos, mas, como dizem que a vida começa aos quarenta, sinto-me feliz com os meus trinta anos, com minhas árvores, meus filhos, meus livros.

 

ENQUANTO ISSO, VAMOS ESPERANDO O NOVO NORMAL

Hoje eu não vou sair de casa não. Quero preguiça, ajeitar o altar dos meus santos, raspar a parafina acumulada, renovar a vela, riscar o fósforo. Perdemos Dom Pedro Casaldáliga, perdemos Aldir Blanc, Nirlando Beirão, Moraes Moreira, Enio Moricconi, Chica Xavier, Gilles Lapouge, Antônio Bivar, Rodrigo Rodrigues e outras cem mil pessoas neste 2020, o ano que devia terminar logo. Hoje me resta ir pro sofá, pra rede, pro colchão. Molhar as plantas, catar as coconilhas escondidinhas nos galhos, passar azeite nas folhas de ficus para que elas sobrevivam brilhantes, firmes e fortes. Hoje é domingo, vou ficar distante do noticiário, ao menos uma vez na semana. É domingo aqui e já quase segunda no Vietnã. Hoje é dia de escutar o Jardim Secreto de Claudio Santoro, os cantos afro de Matheus Aleluia, hoje é dia de ouvir Hamilton de Holanda e Mestrinho interpretando Drão e o Trem das Onze na sanfona e no violão. Drão, os meninos são todos são e eu não posso ficar nem mais um minuto sem você. Sinto muito, amor, mas não pode ser. Se eu perder esse trem que passa agora às onze horas, só amanhã de manhã.

Sexta, sábado, domingo? Que dia da semana eu vou criar coragem e sair às ruas? Trombar nas pessoas, sentar lado a lado no ônibus junto com uma diarista justificando seu atraso pra patroa, perguntar se ele passa na Paulista, responder que horas são, tossir, espirrar, abraçar, beijar. Eu tenho medo de viver o velho normal. Entrar no elevador já cheio e lembrar daquele velho anúncio do desodorante VanEss: sempre cabe mais um. Quando vou voltar ao Itaquerão com Clarice e ouvir ela gritando bem baixinho vai, timão! Que dia vou voltar ao fogão domingo cedo pra preparar aquele couscous marroquino pros amigos, que vão chegando e chegando e enchendo a sala da minha casa? Que dia vou pegar o primeiro avião com destino a felicidade? Que dia vou voltar a Vrises, aquele povoado no interior da Grécia onde morei, onde colhi abricôs e limões sicilianos no pé? Será que ainda terei tempo de voltar a fotografar as pessoas no metrô, como faz minha amiga Patrícia Mesquita? Sabe de uma coisa? Quero espiar as bancas de revista, comer um pastel de feira, quero comer um pedaço de abacaxi nos carrinhos de frutas de Higienópolis, quero caminhar até a Livraria Martins Fontes e comprar a nova Edição do livro Admirável Mundo Novo. 

Estão matando os meninos pretos da periferia do Brasil. Não, não são invisíveis, são de carne, osso, alma e sangue escorrendo na calçada. Matando a queima-roupa, sem perguntar o nome, o numero do CPF, o nome do pai, o nome da mãe, débito ou crédito. Basta estar na rua e carregar a cor preta na pele que é suspeito número um, de crime algum. Estão ferindo o coração de mães, como aquela que guardou o bolo de aniversário do Rogério na geladeira para não derreter, para comer mais tarde, depois do parabéns. Daqui a pouco, ela vai aparecer na televisão de novo, soluçando, pedindo justiça e nada mais. Como Pedro Pedreiro, que não vem, que não vem. A nota pé, a nota seca, vai informar que os policiais foram afastados do serviço de rua e que tudo vai ser apurado. Vai nada, a gente sabe. E amanhã vai ter outro Rogério morrendo de susto, de bala ou vício, caindo sangrando na calçada esburacada de um bairro que não está no mapa. E o governador vai aparecer ao vivo e em cores dizendo que esta não é a norma da policia, que repudia o ato, prometendo apuração e julgamento dos culpados, que vão responder pelos seus atos. Vão nada! O boi já está dormindo.

Fugir pra onde? Só se for pra Pasárgada, onde sou amigo do rei. Quem sabe fugir pra Maracangalha de liforme branco? Fugir como? A pé, de carro, de ônibus, de avião, bicicleta ou caminhão? Quem sabe eu vou pegar aquele velho navio? Pensei, pensei, peguei o mapa mundi, olhei, olhei. Eu não tenho para onde ir. Quem sabe eu vou pra lua, eu mais minha muié. Lá, construir um ranchinho todo feito de sapé. Faça sol ou faça chuva eu vou fugir, nem que seja na lógica do pensamento. Olho em volta e vejo tantos bens materiais, meus discos e meus livros. Olha, pensando bem, eu só deixo a minha São Paulo no último pau de arara.

SIM, VIDAS NEGRAS IMPORTAM SIM

Julieta um dia casou-se com Manoel, dez anos mais velha que ele, de véu, grinalda e tudo. Manoel chegou com três filhas, Heloisa, Célia e Elizia, e passou a ser chamado de Manoel de Julieta. Os dois tiveram o Manoelzinho e a Conceição. Um dia Manoel trocou Julieta por uma mais novinha, mas nunca deixou de ser Manoel de Julieta. 

Havia Ângela Davis de punhos cerrados, os Panteras Negras nas ruas, Martin Luther King sonhando, Nelson Mandela na cadeia, John Lewis, Breonna Taylor, Cassius Clay, aliás Mohammed Ali, Al Hajj Malik Al-Shabazz, isto é, Malcon X. 

Julieta não sabia ler nem escrever. 

Ela passava a roupa da nossa casa, uma trouxa enorme que toda segunda-feira. Ninguém nesse mundo passava roupa tão bem como Julieta. Engomava as camisas, passava golas e colarinhos que dava dó de usar. O vinco das calças, nem se fala. Fazia questão de passar toalhas e panos de prato. Até os panos de chão, Julieta passava. 

Ela chamava ferro de passar de ferro elétrico porque havia o ferro à brasa, como o da casa dela. 

Era uma preta cem por cento que usava uma saia azul marinho batendo na canela, uma blusinha branca de pele de ovo rendada nas bordas da gola. Vinha sempre de sandália de couro carregando uma sacola da cânhamo. Era o uniforme que inventou pra si. Julieta ficava em casa até a última peça. 

Na sacola trazia mudas de taioba, folhas de hortelã e ramos de sálvia. 

Muitos sábados fomos passar a tarde na casa de Julieta, no bairro de Santa Mônica, onde ela morava. Era uma casa muito simples, caiada de verde claro, impecavelmente limpa. Julieta colocava paninhos de linho branco em cima dos móveis, protegendo os porta-retratos, um vasinho com flores de plástico, uma fruteira com bananas, laranjas e carambolas. Na parede, uma Santa Ceia e duas fotos ovais, uma dela, outra de Manoel.  

Ela usava tranças muito bem feitas e nós fomos acompanhando durante o passar dos anos, os seus cabelos embranquecendo.

Nas visitas a Julieta, ela nos servia um café muito saboroso, cheiroso, com broa de fubá, ora bolinhos de chuva, ora sequilhos que ela mesmo fazia. 

Lembro-me que Manoelzinho foi crescendo, crescendo e virou doutor numa época em que não havia rap, hip, nem hop. O rock ainda engatinhava com Bill Haley e seus cometas ao som de Rock Around the Clock. 

Agora estou procurando Conceição, a irmã de Manoelzinho.

Sim, vidas negras importam. 

[foto Guilherme Gandolfi]

FINALMENTE CHEGOU O DIA DA VACINA

Caiu numa segunda-feira, dia 29 de fevereiro de dois mil e vinte e pouco, bem no aniversário de noventa anos do Sergio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o Jaguar. Minha aldeia acordou aliviada. Os mais velhos abriram as janelas, respiraram fundo deixando o vento tropical entrar com tudo. 

Máscaras aos milhões foram jogadas no lixo, no chão, dos janelões. Máscaras brancas, pretas, xadrez, do Fla, do Flu, do Hello Kit.  Soldados do Exército foram recolhendo uma a uma e jogando em caminhões verdes-olivas que saiam em comboio para os aterros sanitários.

Uma 1664 estupidamente gelada foi aberta no Café Saint Sévérin, no número 3 da Place Saint Michel, ao mesmo tempo que uma Devassa trasbordava espuma na esquina de Prudente com Vinícius de Moraes. 

O frescobol voltou, a galera ao Itaquera voltou, o grito de gol voltou. Não se ouviu mais na televisão os novos números de infectados, os novos números de mortos, se a curva subiu ou desceu. Não se falou mais em assintomáticos, em comorbidades, em covas coletivas, em respiradores, em óbitos. 

Abriram os teatros cheirando a mofo, os cinemas cheirando pipoca, as academias enferrujadas e as barbearias com ninhos de rato. Acenderam-se velas nas igrejas e catedrais, o sol iluminou os vitrais e promessas foram pagas. 

Os motoristas buzinaram, os ciclistas desviaram das poças, os pedestres chutaram latas. O galo cantou, o grilo grilou, cachorro latiu, o gato miou, o passarinho cantou, a cigarra zuniu, papagaio falou e a girafa? A girafa não fala.

Eles perderam a ceia de Natal, o panetone, aquele quentão de São João, perderam a Páscoa, coelhinhos e chocolates. Perderam o dia das mães, o dia dos pais, o dia dos mortos, o Grand Prix, perderam a São Silvestre perderam a parada LGBT+, perderam a graça.

Os velhinhos recitaram Drummond: E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E agora, você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José?

E cantaram na chuva: Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia. Como vai proibir quando o galo insistir em cantar. Água nova brotando e a gente se amando sem parar. 

Os parques floriram, os sabiás cruzaram, os esquilos se multiplicaram, os chorões brotaram, a grama cresceu, os patos chocaram. 

As pessoas se beijaram nas ruas como se fosse esta noite a última vez. Dentro dos meus braços, os abraços foram milhões de abraços. Apertado assim, colado assim, calado assim, abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim.

Tudo isso, depois da picada.

[Obras citadas: O som dos bicos (Geraldo Amaral e Renato Richa), José (Carlos Drummond de Andrade), Besame Mucho (Consuelo Velásquez) e Chega de Saudade (Tom e Vinícius)]

[ilustração/Obra de Marc Chagall]

QUE É QUE TEM NESSA CABEÇA, IRMÃO?

 

Outono de mil novecentos e setenta e cinco. O frio entrava na minha pele, deixava roxa as pontas dos meus dedos, vermelho o meu nariz. O dia não tinha ainda amanhecido e eu apressava os passos nas pedrinhas do Jardin duLuxembourg, rumo à Faculdade de Filosofia. As árvores uniformes balançavam ao ritmo do Bolshoi, derrubando as últimas folhas secas, tecendo um tapete no chão, onde as pombas encolhidas se protegiam. Eu passava fazendo barulho com os meus tamancos suecos, enquanto os esquilos não estavam nem aí.

Walter Franco tinha acabado de chegar nas minhas mãos como um revolver, sem acento. Assim em letras minúsculas, caixa baixa como dizem hoje em dia, embalado entre duas pranchas de isopor, embrulhado num papel kraft transbordando de selos de jacarés do Pantanal, ariranhas, embaúbas e buritis.

Saigon rendera aos comunistas, Jacqueline Onassis, ex-Kennedy, tinha ficado sem seu Aristóteles, havíamos perdido o cronista Arnold Tonybee, o cantor Paul Robeson e o jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do DOI-Codi de São Paulo, terra da garoa que eu nem conhecia ainda. Ficamos livres de Francisco Franco, enquanto os libaneses davam adeus às armas.

O céu de novembro já era permanentemente cinza, quase chumbo, e as fotografias que fazia quase que diariamente dos gramados campos de lá, já não eram tão verdes, tão lindos como os da canção do exílio. A revelação mostrava uma Paris quase sem cor. O pacote que retirara no correio antes de partir ao estudo de Heidegger só foi aberto no intervalo, depois de uma aula de duas horas do professor Pierre Albert sobre a imprensa dos países da cortina de ferro.

Retirei um copo de chocolate quente e sentei num banco de madeira bem em frente à máquina. O chocolate estava pelando, coloquei o copo em cima da madeira sem verniz e rasguei o papel kraft. O disco chegou intacto e o primeiro impacto foi ver Walter Franco, visto assim de frente, de John Lennon na capa, como estivesse atravessando uma nossa Abbey Road. Revólver ou revolver? Decifra-me.

Tantos anos longe, lembrava-me apenas vagamente de um Walter Franco em imagens em preto e branco na tela de uma televisão GE que pegava mal. Ele sentado no chão declamando Cabeça no Festival Internacional da Canção. Sua voz doce abafada por um festival de vaias que vinham de todos os cantos. Bem zen, ele parecia se lixar.

“Que que tem nessa cabeça, irmão, saiba que ela pode explodir.”

Voltei pra casa feliz da vida, eu que já tinha Smetak, Alfaiate, Wanderley e agora Franco. Antes mesmo de esquentar na frigideira o arroz com carne moída e milho, coloquei o vinil na vitrola e ouvi cada canção.

Feito gente, Eternamente, Mamãe d’Água, Partir do Alto, 1 Pensamento, Toque Frágil, Nothing, Arte e Manha, Apesar de tudo é muito Leve, Cachorro Babucho, Bumbo do Mundo, Pirâmides e Cena Maravilhosa.

Guardei pra mim versos e trocadilhos, depois de escutar seis vezes as composições. Descobri que o sorriso do cachorro está no rabo, que amei como pude, o éter na mente, Iara, eu te amo muito mais agora é tarde eu vou dormir e nada mais.

“Nothing

To see

Nothing

To do

Nothing

Today

About me

I’m not

Happy now

I’m not

Sad

I’m just

Nothing

Now

Looking

To the empty

Space.”

Até o meu inglês ruim era capaz de decifrar. Walter Franco foi a minha trilha sonora durante todos aqueles anos longe daqui. Ninava meus filhos, lavava pratos, cuidava de crianças, construía estradas, distribuía panfletos, caminhava pelas ruas, ruelas e pelas tabelas com seus mantras dentro da minha cabeça, pra não explodir.

“Qual é a sua menina do olho

Meia-lua na esquina do outro

Meia-lua na esquina do ouro

É sua menina do olho

Onde é uma bruxa e um bruxo

Late um cachorro babucho

Late um cachorro babucho

Onde é uma bruxa e um bruxo.”

[Crônica da semana publicada no site da revista Carta Capital]

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TEREMOS SAUDADE DE QUÊ?

Pode parecer, mas não sou tão nostálgico assim, aquele que vive remexendo o passado, procurando relíquias no fundo do baú, encontrando bilhetinhos de amor cujo perfume sumiu com o tempo. Sinto saudade, de vez em quando apenas.

Saudade dos Beatles em cima do telhado cantando Let It Be, saudade do Cine Pathé, da Mesbla, saudade do disco voador da Estrela, saudade do pirulito de chocolate da Kibon, saudade dos soldadinhos que vinham dentro do vidro de Toddy.

Sinto saudade do cachorrão do Ted’s, sinto saudade do milk-shake do Xodó, sinto saudade da Livraria Van Damme, da coxinha da Torre Eiffel, da Padaria Savassi, do suco Yuki, dos fascículos da História da Música Popular Brasileira dependurados numa banca de jornal na Rua da Bahia. Sinto saudade de Belo Horizonte.

De vez em quando sinto saudade do lança-perfume, da caneta Parker 51, da tinta Super Kink Azul Real Lavável, do travel cheque, do sabonete Gessy e da colônia Pinho Campos do Jordão.

Sinto saudade do Frevo número 2: O Recife tá longe/A saudade é tão grande/Eu até me embaraço/Parece que eu vejo/O Haroldo Matias no passo/Valfrido e Cebola, Colasso/Recife tá perto de mim/Saudade que eu tenho/São maracatus retardados/Que voltam pra casa cansados/Com seus estandartes pro ar.

Sinto saudades mais recentes também. Sinto saudade da Fotóptica, da Videolocadora 2001, do envelope verde e amarelo, de rebobinar fita K-7 com caneta Bic, dos cards do chocolate Surpresa e do Orkut.

Dizem que a palavra saudade só existe em português. Saudade daqui, de Portugal, de Cabo Verde e Macao. Uma saudade danada, eu sinto da rapadura da Fazenda do Sertão, da língua com ervilhas frescas da Vó Romilda, da couve-flor empanada da minha mãe, do bife à caçarola do meu pai, do Mandiopã, do Tenente Rip Masters, do sargento O’Hara, do cabo Rusty, do Rin-Tin-Tin e do Guarapan.

Teremos saudade de que no futuro? Do WhatsApp, do Instagram, do Facebook, do Twitter, dos emojis, do kkk, do rsrsrs, do blz, do coraçãozinho vermelho ou roxo, da mãozinha indicando joia ou batendo palminha?

Será que um dia sentiremos saudade do Tiago Leifert apresentando o The Voice Brasil, do Luciano Huck consertando uma lata-velha, do Se Joga, de todo mundo falando legado, do Wesley Safadão cantando Na cama que eu paguei?

Será que a palavra saudade vai existir no futuro? Será que vamos ouvir tem dias que eu morro de saudade da bolinha colorida rodando no meu computador ou tem dias que eu morro de saudade daquela vozinha do telemarketing? Será que alguém vai sentir saudade do Galvão Bueno, da Joice Hasselmann, do véio da Havan ou do Faustão?

Não! A saudade é apenas uma dor pungente, a saudade é uma coisa que mata a gente, morena.

[Crônica da semana publicada no site da revista Carta Capital]

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O QUE VOCÊ LEVA NAS MÃOS E OUTRAS HISTÓRIAS

1.
Olhando assim pela janela do carro, do ônibus, do apartamento, andando pela calçada quase sempre esburacada, sentado na mesa de um bar tomando uma cerveja, percebia que cada pessoa que passava, levava alguma coisa nas mãos.

Homens levavam pacotes, pastas, saquinhos, embrulhos grandes e pequenos. Mulheres basicamente bolsas de couro ou imitando couro e sacolas de papel ou plástico. O que esses homens e essas mulheres levam tanto, pra lá e pra cá? Não via uma viva alma nas ruas com as mãos abanando.

Daí surgiu uma ideia de pauta para o telejornal que fazíamos todo final da noite. Na reunião diária, a mais democrática da história do jornalismo, todos participavam: editores, redatores, produtores, contínuos, o cara do café, a secretária, a faxineira e quem mais aparecesse. Todos davam sugestões, pitacos e o telejornal acabava ficando pronto.

 Apresentado por Lillian Witte Fibe, o Jornal do SBT muitas vezes batia o da Globo. No início, não foi fácil. Lillian vinha da Vênus Platinada, mais precisamente do Planeta Economia e gostava de falar de debêntures, do índice Nasdaq, da Selic, da inflação, do overnight, da cotação do dólar e do ouro. Lillian não distinguia o funk do rap, nem o rap do rock. Não sabia quem era o Alceu Valença de Coração Bobo ou Geraldo Azevedo de Dia Branco, tampouco o Zé Ramalho de Vida de Gado.

A pauta foi fechada e a repórter foi pra rua perguntar o que as pessoas estavam levando nas mãos, dentro da bolsa, da pasta, do embrulho, do saquinho de plástico. O resultado foi isso aqui, ô ô, um pedacinho do Brasil.

Encontramos gente levando muda de jabuticabeira da casa da mãe, documentos para reconhecer firma, resultados de exames médicos, um jeans pra dar bainha, umas comprinhas de supermercado, um macaco Murphy pro filho e, finalmente um homem magro que fez questão de rasgar o pacote aos poucos e ir mostrando para a câmara o que tinha lá dentro: uma gaiola dourada para colocar o seu curió.

2.
O forte do nosso telejornal era o comportamento. O sucesso da matéria mostrando o que as pessoas estavam levando nas mãos foi tão grande que tivemos uma outra ideia de pauta. Num mundo ainda sem Spotify, a onda era o walkman. As pessoas começaram a usar fone de ouvido e nós fomos procurar saber o que elas estavam ouvindo no meio da rua.

Microfone do SBT na mão, a pergunta do repórter era curta e grossa: O que você está ouvindo? Passado o susto, ninguém recusou em responder: curso de inglês, Fagner cantando Borbulhas de Amor, Gabriel, o Pensador cantando o rap Tô Feliz, matei o presidente, Fernanda Abreu, Rio 40 graus e os Engenheiros do Havaí, Muros e grades.

Estou ouvindo November Rain, com Guns N’Roses, Make It Happen, com Mariah Carey, Remember the time, com Michael Jackson. Estou escutando as Lições de Sabedoria, de um mestre da seita Seicho-no-Ie.

A matéria foi pro ar e, de novo, outro sucesso de público e crítica. O editor ilustrou cada música com trechos de videoclipes. Era assim que chamávamos, na era da MTV. Lilian Witte Fibe voltava com cara de assustada depois da exibição dessas matérias e comentava: Só mesmo o Jornal do SBT!

3.
Para onde você está indo? Essa foi a nossa terceira e última reportagem da série. O objetivo era espalhar três repórteres pelos cantos da maior cidade da América do Sul e perguntar para cada um: Para onde você está indo?

Para onde será que estava indo essa multidão às oito e pouco da manhã? Consertar um vazamento na Casa Verde. Pro trabalho. Pro supermercado. Pra escola. Fazer uma entrevista de trabalho. Pra padaria tomar café. Pra farmácia comprar absorvente. Pra uma obra no Itaim, onde estou pintando um apartamento.

Aquela imagem acelerada da multidão correndo pelo Viaduto do Chá, com uma música de Tom Zé ao fundo, impressionava. São oito milhões de habitantes/De todo canto e Nação/Que se agridem cortesmente/Correndo a todo vapor/E amando com todo ódio/Se odeiam com todo amor.

O último entrevistado foi um motorista musculoso da linha Cohab Adventista, que fechou a série respondendo: Estou indo pro ponto final.

[Crônica da semana publicada no site da revista Carta Capital]

cartacapital.com.br

DESCONFIO QUE ESTOU FICANDO MEIO VELHO

Por trabalhar com uma equipe muito jovem, que não viveu o mundo que vivi, fico achando que ninguém se lembra de nada.

– Sabe o amigo da Onça?

– Lembra do Renault Gordini?

– E do Vigilante Rodoviário?

Até os Beatles, eu pergunto se meus colegas de trabalho conhecem. Beirando os setenta anos, começo a desconfiar de que estou ficando velho, que preciso explicar para as pessoas que Arthur da Costa e Silva foi um ditador feroz, que John Phillips era casado com Holly Michelle Guillian, do The Mamas & the Papas, Didi foi o inventor da folha-seca e que o Toddy não era instantâneo.

Mania de velho.

Quando nasci, o escritor checo Franz Kafka já tinha morrido havia vinte e quatro anos e nem por isso eu não sei quem foi o autor de O Processo, O Castelo, O Desaparecido e A Metamorfose. “Estou velho, mas gosto de viajar”, já dizia Arnaldo Dias Baptista, aos vinte e sete anos de idade.

Que mania é essa de achar que o passado é só meu, do Humberto Werneck, do Fernando Morais, do Ricardo Kotscho e do Nirlando Beirão? Claro que a juventude sabe quem foi John, quem foi Paul, George e Ringo e cantarolou Yesterdayum dia. Como nós sabemos quem foi Ataulfo Alves, Noel Rosa, Ary Barroso e Lamartine Babo e cantarolamos Com que roupa? um dia.

Perdi a noção do tempo.

Outro dia perguntei para minha filha se ela chegou a ir em algum show do Cazuza. Assustada, ela respondeu:

– Pai, quando eu nasci o Cazuza já tinha morrido.

O tempo passa, o tempo voa e a Poupança Bamerindus acabou.

A ditadura militar, pra mim, é como se tivesse acontecido ontem. Quem não se lembra dos estudantes levando cacetada da polícia na Avenida Afonso Pena? Fugindo dos jatos d’água e gritando “yankees, go home e morte aos gorilas ?

Maio de 68 parece que foi ontem, tipo Maio 18, mesmo tendo passado mais de cinquenta anos.

– Isso a gente colava com goma arábica!

– Goma o quê?, espantou-se o jovem que trabalha na minha frente.

Aí começo a explicar não somente o que é goma arábica, mas o que é chiclete Ping-pong, Mirinda morango, simca chambord, as moças do sabonete Araxá e as estampas do Eucalol.

Ser velho é ainda preencher um cheque, fazer sinal pro táxi parar na rua, digitar com dois dedos no celular, discutir com o Waze, mandar um WhatsApp pra filha dizendo: “Filha, você esqueceu o seu celular em casa”.

Será que alguém ainda lembra do sabonete Vale Quanto Pesa, da vitrola três em um, do tigre da Esso, dos maiôs Catalina, da fotonovela, das alpargatas Sete Vidas?

Será que alguém sentiu o suingue de Henri Salvador, já seguiu a novela de Dona Canô, já riu a risada de Andy Warhol ou amou a elegância sutil de Bobô?

E o pinguim em cima da geladeira, a zebrinha no Fantástico, o Bombril na antena da TV e a plaquinha “não corra papai”no painel da Rural Willys? Será que alguém sabe o que eu estou falando?

Minha mulher nunca viu o Garrincha jogando, o Mohamed Ali lutando, o Fittipaldi correndo, a Maria Esther Bueno sacando, o Sergio Cardoso atuando e o Altemar Dutra cantando.

Piso em ovos quando vou contar um caso lá de Minas Gerais. Faço um esforço danado, mas de vez em quando solto uma rádio patrulha, uma abreugrafia, um slide, um creme rinse. E quando eu digo que achei o filme um abacaxi, todos assustam.

– Abacaxi? Como assim?
[Crônica da semana publicada no site da revista Carta Capital]
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QUER ME ABORRECER, É TOCAR NESSE ASSUNTO

Nos anos dourados do Jornal da Tarde, muitas histórias surgiram. Histórias que entraram para o folclore do jornalismo. Algumas reais, outras inventadas, aumentadas, editadas. Eu invejo meus amigos – e são muitos – que viveram, na redação, a melhor fase de suas vidas.

O JT era criativo, divertido, animado, inteligente. Pelo menos imagino eu, pelas histórias que me contam e são muitas. Morro de inveja de não ter vivido ali do lado esquerdo daquele corredor, mesmo me divertindo muito do lado direito, no Caderno 2, alguns anos depois.

A última do Jornal da Tarde, soube na semana passada, contada por um dos integrantes daquela redação de bambas.

Ele me contou que um repórter começou a trabalhar no jornal, um mês de experiência. Não decolou, não pegou o espírito da coisa. No trigésimo dia, seu chefe o chamou em sua sala e fez aquele comunicado que ninguém gosta de fazer: “Olha, sinto muito, mas você não se encaixou no nosso espírito, no nosso modus vivendi e, sendo assim, você não vai ser contratado. Amanhã, não precisa mais vir”.

O repórter iniciante baixou a cabeça, saiu da sala e terminou a matéria que estrava escrevendo, faltando apenas o último parágrafo. Tek tek tek… bateu nas pretinhas as últimas palavras, gritou desce! E foi-se embora, sem esvaziar as gavetas.

No dia seguinte, por volta de meio-dia, hora que começava a dar expediente, o demitido chegou, tomou um cafezinho no corredor, entrou na redação, sentou-se no lugar que sempre costumava trabalhar e começou a datilografar um texto. Sete da noite, gritou desce e foi-se embora.

No segundo dia, a mesma coisa. A redação olhava meio desconfiada, meio assustada, aquele demitido trabalhando. Ninguém tinha coragem de dizer ai pra ele.

Até que no terceiro dia, incomodado com sua presença na redação, sabendo que o RH já tinha sido avisado e que ele já não estava mais recebendo o seu salário, o chefe, pisando em ovos, resolveu ir falar com ele.

– Olha, sabe aquela conversa que tivemos no início da semana, na minha sala?

O demitido olhou para o chefe, ou ex-chefe, e disse:

– Quer me aborrecer, é tocar nesse assunto!

A frase entrou para a história e assim que chegou aos meus ouvidos, pensei:

1- Quer me aborrecer, é atender o telefone e ouvir: Olá! Aqui é o Moacir Franco!

2- Quer me aborrecer, é lembrar que amanhã cedo tenho dentista.

3- Quer me aborrecer, é chegar na sala de cinema e o filme já começou.

4- Quer me aborrecer, é ligar o computador e aquela bolinha colorida ficar rodando eternamente.

5- Quer me aborrecer, é chegar no ponto do ônibus e ver que ele acabou de passar.

6- Quer me aborrecer, é preparar uma caipirinha, abrir a geladeira e ver que o gelo acabou.

7- Quer me aborrecer, é a água esfriar no meio do banho.

8- Quer me aborrecer, é bater um prego na parede e sentir que é concreto.

9- Quer me aborrecer, é o cara da Net pedir pra desligar tudo na tomada.

10- Quer me aborrecer, é a luz acabar bem na hora da disputa do pênalti,

11- Quer me aborrecer, é derrubar café na camisa, segundos antes de sair pro trabalho.

12- Quer me aborrecer, é ver o celular cair no chão e espatifar a tela.

13- Quer me aborrecer, é abrir o congelador seco por um Haägen-Dasz e ver que é caldo de risoto congelado.

14- Quer me aborrecer, é acabar a tinta da impressora no meio da impressão.

15- Quer me aborrecer, é escrever uma crônica e não saber que fim dar a ela.

[Crônica da semana publicada no site da revista Carta Capital]

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MEU ENCONTRO COM OS ÍNDIOS DA TRIBO WAIÄPI

Quando o avião da Varig abriu as portas no Aeroporto Alberto Alcolumbre, em Macapá, foi como se tivesse aberto a porta do forno da minha cozinha. Veio aquele calor lá do Norte, de baixo pra cima, contagiante.

Depois de descer os degraus, a camiseta já mostrava pontos de suor aqui e ali. O céu limpo não anunciava uma nuvem sequer. Todo azul, um azul bem de lá.

Uma van da Fundação Konrad Adenauer Stiftung estava me esperando debaixo de uma árvore lindíssima, jeito de baobá. Em poucos minutos já estava no hotel, uma construção de madeira rústica, com vista pro Rio Amazonas, quase mar.

Curioso pensar que aquele mundo de água é do mesmo rio que passava na minha vida, durante a temporada que morei em Manaus, trabalhando pro Canal 25.

Konrad Adenauer Stiftung foi o primeiro chanceler alemão do pós-guerra, de uma então Alemanha Ocidental, e que hoje da nome a uma fundação, a que me trouxe até aqui.

No dia seguinte, na mesma van, pegamos uma estrada de terra, cheia de paus, pedras e pó e fomos seguindo. Mais um trecho de trem, a viagem que parecia não ter fim até que, finalmente, chegarmos à aldeia dos índios Waiäpi.

A tribo costuma passar os invernos nas aldeias da Funai, onde há posto de saúde, enfermarias, escolas e a casa dos missionários. No verão, vivem seus dias de índio na floresta, temporada de caça e pesca.

Com olhares profundos, curiosos e visivelmente assustados, os índios pareciam nos esperar. Não abriam a boca, apenas observavam cada passo que dávamos naquela poeira amarelada.

Era início de verão e as terras abundantes acolhiam pés de macaxeira, cana, cará, inhame, pupunha e bananas com fartura. Experimentei a cana doce e a banana da terra defumada.

Ali naquela aldeia havia pouco menos de cinquenta índios. O primeiro contato que tiveram com a civilização foi em 1973. O português deles ainda é ruim, mas entendo, alguns segundos depois que falam.

Um índio aponta para a plantação e me explica que só de macaxeira, eles plantam doze variedades.

– Se a praga chega e ataca uma espécie, temos ainda outras onze.

Sábios.

– O peixe aqui é farto. Já na brasa, diz outro.

Vejo crianças correndo atrás de um bicho com jeitão de tatu, não sei se é tatu, e penso na canção de Rita Lee.

Se Deus quiser, um dia eu quero ser índio/Viver pelado, pintado de verde num eterno domingo/Ser um bicho preguiça e espantar turista/E tomar banho de sol, banho de sol, banho de sol.

O sol arde minhas costas e a essa altura, fim de tarde, já estou sem camisa e com um risco de urucum no rosto vermelho.

Os Waiäpi são vermelhos.

Passei o dia ali, ouvindo histórias e contando as minhas. Antes do anoitecer, teve macaxeira, inhame, peixe e dança.

Tem dias na vida que a gente não esquece nunca. O meu encontro com os Waiäpi faz anos e eu ainda me lembro perfeitamente da van indo embora e eu olhando pra trás, cantarolando, esperando voltar um dia.

Baila comigo, como se baila na tribo/Baila comigo, lá no meu esconderijo.

[Crônica da semana publicada no site da revista Carta Capital]

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