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Djamila na Folha
– A gente entra no cinema e deixa o mundo lá fora.
Nelson ouviu a frase em Lisboa mas bem podia ter escutado na paulistana rua Augusta. Aquela que vai do centro aos Jardins.
Na primeira parte, calçadas estreitas nos levam a botecos, brechós, ambulantes. A gente se anima com sons e cores, nem sente a ladeira acima até chegar à Paulista. Então, no segundo trecho, é colina abaixo com lojas, restaurantes, hotéis. Tudo caro. Dois mundos na mesma rua.
Nelson nunca duvidou: O cinema com nome de banco era o melhor programa de toda semana, de preferência nas tardes vadias de ingressos mais baratos. Por duas horas, o mundo e a vida ficavam lá fora.
Num documentário de Eduardo Coutinho, a sala, de apenas trinta e três lugares, lotou. Em uma dessas coincidências, que Nelson viu como sorte, a única poltrona vazia, a 5G, era ao lado dele.
A sorte aumentou quando viu, mesmo com a sala escura, a morena de pernas longas e saia curta. Gentil, se levantou e ela se acomodou. Agradeceu com um discreto balanço de cabeça.
As entrevistas preciosas de Coutinho seduziam os 32 espectadores, já que Nelson só pensava naquilo. Não podia desperdiçar o presente inesperado. O que dizer à vizinha de poltrona? Os créditos deslizavam na tela e o nervosismo crescia. Como se aproximar? Meu Deus, me ajude.
A moça alongou os braços e sacudiu o pescoço. Seria professora de yoga? Estaria cansada? Ou apenas oferecia, naqueles derradeiros segundos, a oportunidade tão desejada? O ultimato veio quando as luzes se acenderam e revelaram a sala deserta.
No silêncio ensurdecedor, a inspiração explodiu na mais óbvia das perguntas.
– Gostou do filme?
Não, Fátima não gostou, Fátima adorou. O filme e tudo o mais. O rapaz charmoso, a chance de conversar e o convite que veio em seguida.
– Topa um café?
Fátima respondeu com o melhor sorriso e Nelson trouxe os expressos. Depois, empanadas com cerveja.
– Peguei de carne e de frango. Cuidado, estão muito quentes.
– Qual você prefere?
– A que você não quiser.
E, então, mais cerveja. Tudo ali, no bar Fellini do cinema anexo da Augusta. Debaixo da árvore, o ex-fumante Nelson deu umas tragadas no cigarro de Fátima, que sentiu-se ainda mais feliz quando soube que era solidariedade. Agora confiante, Nelson perguntou mirando os olhos pretos.
– Moro aqui perto, quer conhecer?
– Já é tarde.
– Rapidinho.
Fátima foi e mora lá até hoje.
Por vinte anos viram, quase sempre de mãos dadas, os melhores filmes de suas vidas nas duas salas do anexo, enquanto a árvore, no jardim do Fellini, crescia com sombra e ar puro a poucos metros da balbúrdia. No sossego do refúgio, viajavam nas emoções do que viam na tela e do que viviam juntos ou separados.
Íntimos do lugar, batiam papo com a equipe de garçonetes e com o bilheteiro Alberto.
– 5G e 6G estão livres.
– Oba. Nossos lugares marcados.
– Eu sei. Brincava o bilheteiro.
Também no refresco daquela sombra, depois de rir e chorar com Ricardo Darin em o Filho da Noiva, Fátima deu a melhor notícia daquelas duas vidas: Isabela ia chegar no fim do ano. Era maio de 2004.
Quase vinte anos depois, a cena é outra. O prédio do cinema e as lojas vizinhas podem desaparecer. A ordem é botar tudo abaixo e levantar um prédio bem alto. Mais um.
Houve protesto, abaixo-assinado e a justiça decidirá o fim da história. A última sessão foi exibida mês passado.
Dessa vez, Nelson e Fátima preferiram o mundo aqui fora.
*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas, Birinaites, Catiripapos e Borogodó